São Paulo, domingo, 18 de outubro de 2009

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A minha vida não é de putaria

Ney Matogrosso diz à Folha que gosta de pouca gente; aos 68, o cantor lança o passional "Beijo Bandido" e afirma não estar apaixonado

Daryan Dornelles/Folha Imagem
Ney Matogrosso, 68, que lança "Beijo Bandido', posa na sala de estar de seu apartamento, no Leblon (RJ), na semana passada

MARCUS PRETO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Ney Matogrosso é tão fluente em cima do palco quanto na frente de uma câmera fotográfica. O cantor tem domínio completo sobre o próprio corpo e parece adivinhar como ele está "resultando" do outro lado, aos olhos do público ou dentro da objetiva da máquina.
"Vocês não vão usar Photoshop nessas fotos, vão?", perguntou, enquanto posava para esta reportagem. "Detesto as "correções" que certas revistas fazem na cara das pessoas, deixam todo mundo desfigurado, parecendo cirurgia plástica."
Aos inacreditáveis 68 anos, Ney não quer esconder suas -poucas- rugas. Elas aparecem, sem retoques, na foto da capa de "Beijo Bandido", álbum que acaba de lançar.
Se comparado ao anterior "Inclassificáveis", show em que Ney retomava com ímpeto o teor sexual de seus trabalhos mais pop, o novo disco soa quase como o de outro artista.
É aquele Ney que surge de vez em quando, mais focado no canto do que na cena -como aconteceu em 1990, quando dividiu o palco com Raphael Rabello no espetáculo "À Flor da Pele", ou em 2002, quando releu a obra de Cartola.
Aqui, as canções vêm dos universos mais variados. De Chico Buarque e Edu Lobo a Kid Abelha, de Roberto e Erasmo Carlos a Astor Piazzolla, de Jacob do Bandolim a Cazuza. Universos de Ney, todos eles.
Leia, a seguir, a entrevista.

 

FOLHA - Quando lançou "Ney Matogrosso Interpreta Cartola", você disse que se sentia mais nu cantando esse repertório "sério" do que quando expõe o corpo no palco.
"Beijo Bandido" também é assim?
NEY MATOGROSSO
- Sim. Fazer esse show é muito mais difícil, me exige muito mais. Tenho de estar com a voz tinindo e não tem como enganar.

FOLHA - Você vem de "Inclassificáveis", show de carga sexual máxima. "Beijo..." é muito mais plácido, menos hormonal. Como o corpo reage a esse revezamento?
NEY
- Não fico mais exposto ao sexo na minha vida particular quando faço um show como "Inclassificáveis". O exercício da minha sexualidade independe do palco. Claro que o que faço [em shows mais sexuais] provoca uma reação nas pessoas -e elas me solicitam mais. Mas eu não necessariamente correspondo, já que não faço isso com a intenção de sair dali com alguém. Quando estou liberando aquilo, não faço para alguém em especial. Estou liberando para todos.

FOLHA - Então essa explosão sexual fica restrita ao palco?
NEY
- Sim. Ali, essa sexualidade também bate excessiva para mim. Eu me excito no palco.
Não fico de pau duro, mas sinto que estou excitado com aquilo tudo que eu mesmo provoco. E com a reação do público. Isso excita meus sentidos.

FOLHA - Você vem produzindo muito, faz lançamentos anuais nesses tempos de indústria fonográfica falida. O que gera esse movimento?
NEY
- Já quis entender esse ímpeto. Será que eu estou tentando aproveitar o momento em que ainda estou no domínio pleno da minha voz? Porque sei que a natureza, a idade e o tempo vão se encarregar de me fazer perder esse domínio.
Tudo fica flácido. E o que faz você cantar são músculos -que, todos sabemos, a velhice derruba. Esse negócio é tão louco que eu não paro. Acredita que já tenho o repertório do próximo disco? Não posso conter, é um fluxo. Não fico pedindo nem chamando. Vem. Antes de eu terminar um o outro já está. Antecede. Isso me deixa tranquilo com relação a uma continuidade.

FOLHA - Em "Beijo Bandido", você regrava "As Ilhas", primeira canção lançada depois de sua saída dos Secos & Molhados. Você costuma revisitar os próprios discos?
NEY
- Eu me revisitei neste momento por causa da caixa ["Camaleão", que reeditou em CD sua obra solo lançada originalmente entre 1975 e 1988].
Dei uma ouvida em tudo para entender o contexto daquela história. Porque eu fui fazendo esses discos e, depois de prontos, nunca mais ouvi.

FOLHA - E o que achou? Valeu como psicanálise?
NEY
- Não valeu como psicanálise porque o que canto não significa o que estou vivendo.

FOLHA - Nunca foi assim?
NEY
- Nunca. É um exercício do intérprete. Busco um sentido no inconsciente, na minha memória. Não é minha vida.
Tem gente que diz que precisa estar apaixonado até para existir. Eu não. Esse disco mesmo é o exercício de alguém apaixonado e eu não necessariamente estou.
Quando uma música cai na minha mão, a primeira coisa que penso é: se eu fosse um compositor, teria escrito essas palavras? Esse é o meu critério.

FOLHA - A letra, não a música?
NEY
- A letra, as palavras.

FOLHA - É por meio delas que você costura canções em princípio díspares em seu disco? É nas palavras que Kid Abelha e Chico Buarque, Cazuza e Piazzolla encontram afinidades?
NEY
- Penso sempre em termos de roteiro. Tem de ter uma conversa, um assunto. Mesmo que não seja uma sequência lógica. O que importa é a impressão que aquilo, quando colocado junto, vai causar nas pessoas -e não de onde veio cada música, individualmente.

FOLHA - Há alguns cantores da novíssima geração -Leo Cavalcanti, Filipe Catto- que são influenciados explicitamente pelo seu trabalho.
Você tem acompanhado?
NEY
- Não muito. Ouvi Filipe Catto, mas nunca o vi ao vivo.
Mas eu já me via claramente [como influência] no movimento de rock dos anos 80. Me vi no RPM, no Cazuza. Fui uma alavanca para aquela geração.
Eles tinham uma atitude de desrespeito ao instituído e de desacato à autoridade que quem deflagrou fui eu.

FOLHA - Você fala de uma atitude artística, certo? Porque, fora do palco, ninguém tem a menor notícia do que se passa na sua vida...
NEY
- E não vão ouvir nunca.
Não me interessa essa exposição e nem observar quem se expõe. Acho cafona. Estão apelando quando fazem isso. Estamos falando de estrelas, né? São pessoas que têm carreira, têm trabalho. Então, o talento devia segurar. Passo na banca e vejo aquela quantidade de revistas falando de casou e separou, penso: que pobreza!

FOLHA - É preciso esforço para manter essa privacidade?
NEY
- Imagina... Tenho uma vida normal, vou ao cinema, ao teatro, saio com meus amigos.
Gosto de pouca gente, não de turmona. E adoro ficar em casa. As pessoas vêm aqui e a gente se diverte. Quando é verão, ficamos nessa piscina jogados, falando loucuras. Tem uma sauna ali, quem quer faz. Mas não tem putaria. Meus amigos que vêm aqui são meus amigos mesmo. Tenho um lado que é completamente o oposto do que imaginam de mim. A minha vida não é de putaria.


O jornalista MARCUS PRETO viajou a convite da gravadora EMI


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