São Paulo, domingo, 18 de outubro de 2009

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FERREIRA GULLAR

Uma voz, muitas vozes


Chile, 1973: picharam em minha porta "Fora comunista". Liguei o rádio e ouvi Mercedes Sosa

A LAMENTÁVEL notícia da morte de Mercedes Sosa me pôs subitamente no Chile de meados de 1973. A memória é misteriosa e assim estou de novo em meu apartamento da Providência, não muito longe do palácio La Moneda, onde, àquela hora, Salvador Allende governava o país com dificuldade.
Ali, em minha pequena sala, ouvindo o noticiário da rádio Portales, não imaginava a tragédia que se armava como uma tempestade a cair sobre nós. Que o golpe militar viria, disso eu estava certo ou, pelo menos, temeroso, mas quando e de que modo não sabia naquela tarde clara em Santiago.
Vivíamos à beira do abismo sem ter onde de fato nos segurar. Por isso, tudo o que podíamos fazer era seguir em frente, movidos pela esperança. Evitei que Thereza e as crianças fossem juntar-se a mim e corressem os mesmos riscos. Safar-me sozinho seria mais fácil, mesmo porque, quanto a mim, a escolha estava feita, sem alternativas.
Ainda que esperado, o golpe, ao desabar sobre minha cabeça, deixou-me aturdido, mas decidido, mesmo porque o que não tem remédio remediado está. Pus meus poucos dólares sob a palmilha dos sapatos, calcei-os e saí ao encontro dos companheiros de exílio, conforme o combinado para aquela eventualidade. Não os encontrei. Horas depois, caminhava sozinho e aturdido por ruas enfeitadas de bandeiras que saudavam o golpe militar e a derrubada de Allende. Ao chegar, de volta ao apartamento, haviam pichado em minha porta "Fora comunista" e mais o desenho da foice e o martelo. Apaguei a pichação e me preparei para o pior. Foi então que liguei o rádio e ouvi a voz de Mercedes Sosa, cantando:
"Gracias a la vida
que me ha dado tanto
Me ha dado la risa
Y me ha dado el llanto".
Mas, de súbito, cessa a canção e entra um comunicado do novo governo chileno pedindo aos ouvintes que denunciassem os comunistas de sua vizinhança. Sem tirar os sapatos, recostei-me na almofada do sofá e adormeci.
Volto a 2009 e aqui estou escrevendo esta crônica que não sei como terminará. Vejo o rosto de Mercedes Sosa que sorri na primeira página do jornal, muito embora já esteja morta em Buenos Aires. Estranho este nosso mundo das imagens, onde os mortos não se distinguem dos vivos.
Pura ilusão. Santiago do Chile continuou sua história, embora Allende tivesse deixado de existir naquele 11 de setembro de 1973. Os anos se passaram, voltei finalmente para casa, para a família e os amigos. Quando algum fato me trazia à lembrança aqueles dias terríveis, fazia o possível para empurrá-lo de volta ao esquecimento. Tenho horror ao passado, especialmente ao passado doído. Por isso mesmo, fiquei muitos anos sem voltar ao Chile, o que aconteceu, no entanto, em 2000, para participar de um festival internacional de poesia.
Aceitei o convite porque já então a lembrança daqueles dias perdera a contundência com que me ferira por muitos anos. A hipótese de voltar então a Santiago, onde vivera um pesadelo, pareceu-me aceitável e, mais que isso, desejável, para me curar definitivamente do passado.
Foi imbuído dessa disposição que tomei o avião com destino a Santiago do Chile, com minha companheira Cláudia Ahimsa, para quem a ida ao Chile era uma primeira visita à cidade plena de histórias alheias. Sobrevoamos os Andes e, logo depois, descemos no aeroporto Pudahuel.
A certeza de que voltava a uma cidade conhecida sofreu logo ali um primeiro golpe: o aeroporto estava irreconhecível, mais moderno e muito maior. Procurei o balcão onde, 30 anos atrás, pegara o cartão de embarque, ao escapar do inferno, e não o achei.
Seguimos de táxi para o centro e a sensação que eu tinha era de que desembarcara numa cidade onde nunca estivera. Os edifícios eram outros, mais altos, os shoppings centers surgiam a cada quadra. Na avenida Providência, passamos à frente do conjunto residencial onde morara e tampouco o reconheci. Peço ao chofer que pare um instante, desço e busco meu antigo prédio.
Tudo mudou, à frente dele havia um amplo gramado, agora ocupado por novos edifícios de apartamentos. Volto ao carro e peço ao chofer que siga em frente. Depois de um tempo, estamos diante de La Moneda, o palácio presidencial onde morrera Allende. O palácio era o mesmo e era outro. De fato, tudo o que ocorrera ali se apagara, como tem que ser. Não obstante, estranhamente, sentia falta do drama e da paixão que a tudo incendiava naqueles dramáticos dias. Agora reina a paz: as pessoas cruzam as ruas tranquilamente, conversam, riem, imersas no presente, enquanto a manhã chilena seguia adiante, alegre e sem memória.


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