São Paulo, sábado, 18 de novembro de 2000

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Sevcenko pára a montanha-russa no loop

France Presse
Manifestação contra a globalização em Praga, um dos temas tratados no livro



Historiador ataca em duas frentes, com dois novos livros: diz que é preciso conter a tecnologia antes que o homem se afunde no abismo e lança manifesto a favor da reconstrução do Brasil


ALCINO LEITE NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Se você for visitar o historiador Nicolau Sevcenko, a casa é aquela mesma, na esquina, com a antiga arquitetura intacta, grades baixas, janelas escancaradas e uma selva de folhagens na entrada.
Não é esta, que trocou o jardim pela garagem. Nem aquela outra, que parece fortaleza, com seu portão de aço e as janelas vedadas.
Sevcenko acaba de publicar "Pindorama Revisitada - Cultura e Sociedade em Tempos de Virada" (ed. Fundação Peirópolis) e lança em breve "Suspensos no Loop da Montanha-Russa - A Corrida do Século 20 para o 21", dentro da coleção "Virando Séculos", da Companhia das Letras.
Não há como evitar os dois livros. São atuais, urgentes, educativos, sedutores.
O primeiro reúne ensaios sobre a história do Brasil e de São Paulo e traz um surpreendente manifesto a favor da reconstrução do país -tarefa coletiva que teria um monumento simbólico formado por cem árvores de buritis!
O segundo é um manual precioso para entender o presente, que para Sevcenko é como uma montanha-russa no auge caótico do "loop", o rodopio aterrorizante em torno do nada. Talvez seja também um dos primeiros livros brasileiros a refletir sobre as manifestações contra a globalização iniciadas em Seattle (EUA).
Nos dois livros, o tema é a materialidade do tempo. O tempo que passou e a promessa de Brasil que não se cumpriu -no primeiro. A necessidade de enfrentar a irracionalidade da aceleração tecnológica e corrigir as injustiças históricas mundiais -no segundo.
A mãe russa de Sevcenko costumava amarrar sua mão a fim de estancar sua maldita inclinação a canhoto. Não adiantou. Ele permaneceu "gauche" e, na casa antiga do bairro Belenzinho, ainda desenvolveu a mania de escrever coisas obrigatórias para leitores que não desprezam o futuro.

Folha - No "Manifesto para o Século 21", o sr. imagina um prazo de cem anos para reparar as distorções históricas brasileiras e reconstruir o entusiasmo no país. Não é um tempo muito longo?
Nicolau Sevcenko -
Claro que é. Mas a questão que eu tento colocar ali é justamente a questão do tempo, que tem ficado tão imaterial nessa corrida dos implementos técnicos que tornam a vida tão acelerada.
É importante ter diante de nós um projeto que possa ser pautado no tempo, porque só assim ele pode ser cobrado contra o tempo.
Daí, a metáfora do jardim dos buritis, por meio do qual se pudesse cobrar um programa de desmontagem das consequências do colonialismo e do escravismo.
Você teria uma pauta de mudanças que seria focada prioritariamente nas mazelas desse legado histórico, responsável por tudo o que de pior o país apresenta nos planos econômico, político, social, cultural e ambiental.

Folha - Se o sr. fosse elaborar essa pauta de mudanças, quais seriam as primeiras medidas?
Sevcenko -
Em primeiro lugar, um juízo crítico apurado do peso da tradição colonial e escravista que ainda recai sobre as pessoas.
A tendência é nós sermos educados da perspectiva de um presente dos países mais ricos e do estilo de vida que as pessoas desses países apresentam. Tendemos a tomar esse modelo como sendo o estilo de vida padrão e nos colocamos em alinhamento com ele.
Mas a situação é completamente diversa. Aquele estilo de vida só pode acontecer por conta de um processo de exploração que deixou a parte maior da humanidade do planeta numa situação de enorme distanciamento daqueles mesmos benefícios.
Então, seria preciso que se atuasse no Brasil em paralelo com organismos internacionais independentes, no sentido de formar uma maré de opinião que forçasse os países mais desenvolvidos a recompor um equilíbrio que em grande parte eles foram os responsáveis por romper -e de cujo rompimento eles foram sempre os maiores beneficiários.

Folha - A questão de dar tempo ao tempo também é dominante em "Suspensos no Loop da Montanha-Russa". Por que é preciso desacelerar a montanha-russa do presente?
Sevcenko -
A montanha-russa foi uma metáfora de fácil compreensão que criei para a questão da aceleração tecnológica.
A microeletrônica veio intensificar de tal modo essa aceleração que mesmo as pessoas já educadas a terem uma adaptação contínua se sentiram de repente como que perdidas num mundo que se modificou completamente.
Nesse processo de aceleração, o que houve foi um esgarçamento das relações sociais e comunitárias. As tecnologias acabaram incentivando o fechamento de cada um, com seu computador, seu fax, numa pequena tecnosfera, que é uma cápsula tecnológica que o desvincula do restante do mundo e o faz num tempo que é o agora, num lugar que é o aqui.
É crucial puxar o breque, interromper essa fixação no presente e conseguir pensar criticamente.

Folha - O sr. reflete insistentemente sobre as manifestações de Seattle em "Suspensos...". Qual a importância desse movimento?
Sevcenko -
Esses movimentos que a gente viu tomar as ruas de uma maneira teatral, fortemente simbólica, em Seattle, Toronto, Washington e Praga, são a projeção na praça pública desse grande nexo de pessoas de todo o mundo que convergem para uma crítica que pretende recolocar o homem no centro do processo histórico.
Sua questão central é confrontar o modo pelo qual o chamado processo da globalização produziu uma concentração crítica de riqueza em alguns pólos isolados e uma enorme expansão da desigualdade, da exploração e da depredação ambiental no planeta.
Esse personagem de Seattle veio para ficar e ele vai se tornar cada vez mais presente e substantivo.


Livro: Pindorama Revisitada - Cultura e Sociedade em Tempos de Virada Autor: Nicolau Sevcenko Editora: Fundação Peirópolis Quanto: R$ 21 (120 págs.)


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