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LITERATURA
Um dos principais autores da língua inglesa fala à Folha sobre "Quando Éramos Órfãos", que sai agora no Brasil
Ishiguro mostra que somos todos órfãos
Associated Press
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O escritor nipo-britâniico Kazuo Ishiguro segura edição inglesa de "Quando Éramos Órfãos" |
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Kazuo Ishiguro nasceu nove
anos depois que uma bomba nuclear caiu em sua cidade natal:
Nagasaki, Japão. Sua mãe estava
lá quando o cogumelo de fumaça
cresceu no céu japonês. Mas ela
nunca tocou no assunto com seu
filho até que ele fizesse 26 anos.
Duas décadas depois, chegou a
hora do escritor mostrar que a estratégia de sua mãe não funcionou. No início do ano, o escritor
lançou na Inglaterra "Quando
Éramos Órfãos", mostrando que
não adianta que os pais cerquem
as infâncias de seus filhos de azul e
rosa-bebê: uma hora, inevitavelmente a bolha estoura.
A explosão agora vem ao Brasil.
O quinto romance do escritor nipo-britânico de 46 anos, um dos
mais prestigiados da língua inglesa, está chegando às livrarias de
todo o país em edição da Companhia das Letras.
Nessa entrevista à Folha, o autor do premiado "Os Vestígios do
Dia" fala sobre a orfandade do
mundo e diz que seu livro mais recente tem um parentesco distante
com um conceito que aprendeu
em viagem ao Brasil: "a soldado"
(saudade).
Folha - Em "Quando Éramos Órfãos", existem três órfãos, entre
eles o personagem central. Mas a
impressão que fica ao final do livro
é a de que o sr. acredita que o desamparo é do ser humano de modo
geral. Somos todos órfãos?
Kazuo Ishiguro - Somos, de algum modo. É mais ou menos isso
que pretendo sugerir. Procurei focar a idéia de que quando somos
crianças vivemos em um mundo
pequeno e protegido. Não são só
nossos pais que fazem esse escudo
para as crianças. O mundo todo
entra nessa conspiração para permitir que elas acreditem que o
mundo é melhor do que é.
Eu sei que no Brasil há um problema sério com crianças que vivem nas ruas. Em qualquer lugar
do mundo em que se comente isso as pessoas ficam tristes. O instinto de todos é o de querer proteger as crianças, seja lá de qual país.
Quando uso o termo órfão, pretendo dar conta dessa idéia de que
todos temos de sair do abrigo que
nos cerca. Alguns acabam saindo
desse processo com a idéia louca
de que devem deixar o mundo parecido com o que era em suas infâncias. Frequentemente há um
pedaço de nós que olha para trás e
anseia por um tempo ingênuo.
Folha - Christopher Banks, personagem central de "Quando Éramos
Órfãos", é bastante ingênuo, não?
Há momentos do livro em que ele
age como criança. Por exemplo,
quando no meio de uma batalha
terrível entre chineses e japoneses
ele procura deslocar um grupo de
soldados para procurar o lugar em
que ele acredita que seus pais estivessem presos, sendo que eles haviam sido sequestrados 20 anos antes. É quase surreal, não?
Ishiguro - Você está certo, ele
não liga para tudo o que lhe cerca,
só quer satisfazer seu pequeno desejo pessoal. Claro que esse é um
caso extremo. O que isso mostra é
que há um lado irracional de muitos de nós que frequentemente
quer destruir muito daquilo que
nos cerca, ou mostrar-se indiferente.
É claro que pintei a coisa de modo exagerado, mas todos conhecemos pessoas que tenham necessidade de agir autodestrutivamente por conta disso. É o que
acontece com muitos que bebem
pesadamente ou que sempre se
envolvem em relacionamentos
com pessoas violentas.
Folha - O inglês Christopher
Banks tem dificuldade de lidar com
seu passado, sua infância no Oriente. Como o sr., que mudou aos 5
anos do Japão para a Inglaterra, se
relaciona com esse aspecto do seu
passado? Quais as afinidades entre
o sr. e Banks?
Ishiguro - Existem poucas similaridades entre a minha situação e
a de Christopher Banks. Não sou
um escritor autobiográfico. Meu
relacionamento com meus personagens é muito mais complicado.
Na verdade, as experiências de
Christopher Banks que descrevo
são quase opostas às minhas.
Acho que o que ele sente quando
vai de Xangai para a Inglaterra talvez se aproxime do que senti
quando já era adulto e voltei pela
primeira vez ao Japão, para passar
duas semanas. O que acontece
com Banks? Ele cresce em Xangai
sendo ensinado que era inglês.
Quando ele vai para lá, tem a impressão de que está indo para o
país ao qual ele pertence. Mas ele
não se ajusta. A minha experiência foi diferente. Vim do Japão e a
Inglaterra parecia totalmente estrangeira para mim. Anos depois,
quando voltei ao Japão, aquilo
sim me pareceu estrangeiro.
Folha - Em "Quando Éramos Órfãos", o sr. escreve que Christopher
Banks e o amigo dele, o japonês
Akira, tinham uma brincadeira que
era ver quem chorava primeiro, japoneses ou ingleses. O sr. que é um
japonês naturalizado inglês pode
responder. Quem chora primeiro?
Ishiguro - É uma pergunta que
nunca escutei (risos). É interessante. Tanto para os ingleses
quanto para os japoneses é realmente importante não chorar primeiro. Essas duas culturas colocam uma gigantesca importância
nisso. Já estive no Brasil uma vez,
mas não consegui saber como vocês lidam com o choro.
Folha - Como foi a viagem do sr.
ao Brasil?
Ishiguro - Foi fascinante. Nunca
esquecerei um bocado de coisas
do Brasil. Nunca esquecerei de
quando assisti uma partida de futebol, de noite, na praia de Copacabana. Nunca esquecerei nem
mesmo do hotel, o Copacabana
Palace. Cheguei aí em 1990 e tudo
estava em ebulição. O presidente
Collor tinha sido eleito e prometia
uma série de coisas absurdas. Depois fiquei sabendo do epílogo, da
coisa toda do impeachment.
Uma coisa que me fascinou no
brasileiro foi o conceito do geto.
Folha - Geto?
Ishiguro - A forma como se usa
uma espécie de truque para conseguir um atalho, para resolver as
coisas de modo mais rápido do
que se fosse pelo caminho oficial...
Folha - Ah, jeito. O chamado jeitinho brasileiro?
Ishiguro - Isso. Aprendi que essa
é uma forma de sobrevivência na
sociedade brasileira. O respeito
pelas regras vai ficando cada vez
menos importante. A vida brasileira, muitos me dizem, é muito
difícil, é quase "kafkiana".
Você sabe que de certa forma
"Quando Éramos Órfãos" nasceu
embalado por uma noção brasileira. A de "soldado" (saudade). É
uma noção muito interessante.
Falamos sobre personagens como Christopher Banks estar ao
mesmo tempo em Xangai e em
Londres, e não estar em lugar algum. Essa me parece a essência da
saudade. A nostalgia que os portugueses tinham de Portugal
quando estavam no Brasil e a que
eles sentiam do Brasil quando em
Portugal. Em "Quando Éramos
Órfãos" quero mostrar esse sentimento.
Folha - Em 1997 o escritor Martin
Amis lançou seu primeiro romance
policial, "Trem Noturno". Até que
ponto essa decisão de seu companheiro de geração e de país lhe influenciou a usar o gênero policial
em "Quando Éramos Órfãos"?
Ishiguro - Gosto muito de Amis,
mas nem mesmo li "Trem Noturno". Pelo que sei, Amis usou um
modelo norte-americano de romance policial. Eu procurei algo
mais semelhante às histórias de
detetives da Inglaterra do início
dos anos 20. As pessoas conhecem Agatha Christie no Brasil?
Folha - Muito bem.
Ishiguro - É mais ou menos isso
que eu queria como pano de fundo. Os romances ingleses de mistério frequentemente retratavam
uma comunidade tranquila em
que tudo é absolutamente idílico,
com exceção de algo que dá errado, um assassinato que ninguém
sabe quem cometeu. Existe uma
noção nesses livros de que o mal é
difícil de ser contido. Então um
investigador vem de fora e detecta
de onde o mal vem.
Tudo retorna a ser perfeito e,
mesmo com o trauma de ter vivenciado um assassinato, essas
pequenas vilas voltam a um estado de plena felicidade no final. O
que vejo expresso nesses livros é
um desejo de que a natureza do
mal fosse simples. E as pessoas
que liam esses livros haviam experimentado a guerra moderna, a
Primeira Guerra Mundial, e sabiam bem que a verdadeira natureza do mal não era nada simples.
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