São Paulo, sábado, 18 de novembro de 2000

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LITERATURA
Um dos principais autores da língua inglesa fala à Folha sobre "Quando Éramos Órfãos", que sai agora no Brasil
Ishiguro mostra que somos todos órfãos

Associated Press
O escritor nipo-britâniico Kazuo Ishiguro segura edição inglesa de "Quando Éramos Órfãos"


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Kazuo Ishiguro nasceu nove anos depois que uma bomba nuclear caiu em sua cidade natal: Nagasaki, Japão. Sua mãe estava lá quando o cogumelo de fumaça cresceu no céu japonês. Mas ela nunca tocou no assunto com seu filho até que ele fizesse 26 anos.
Duas décadas depois, chegou a hora do escritor mostrar que a estratégia de sua mãe não funcionou. No início do ano, o escritor lançou na Inglaterra "Quando Éramos Órfãos", mostrando que não adianta que os pais cerquem as infâncias de seus filhos de azul e rosa-bebê: uma hora, inevitavelmente a bolha estoura.
A explosão agora vem ao Brasil. O quinto romance do escritor nipo-britânico de 46 anos, um dos mais prestigiados da língua inglesa, está chegando às livrarias de todo o país em edição da Companhia das Letras.
Nessa entrevista à Folha, o autor do premiado "Os Vestígios do Dia" fala sobre a orfandade do mundo e diz que seu livro mais recente tem um parentesco distante com um conceito que aprendeu em viagem ao Brasil: "a soldado" (saudade).

Folha - Em "Quando Éramos Órfãos", existem três órfãos, entre eles o personagem central. Mas a impressão que fica ao final do livro é a de que o sr. acredita que o desamparo é do ser humano de modo geral. Somos todos órfãos?
Kazuo Ishiguro -
Somos, de algum modo. É mais ou menos isso que pretendo sugerir. Procurei focar a idéia de que quando somos crianças vivemos em um mundo pequeno e protegido. Não são só nossos pais que fazem esse escudo para as crianças. O mundo todo entra nessa conspiração para permitir que elas acreditem que o mundo é melhor do que é.
Eu sei que no Brasil há um problema sério com crianças que vivem nas ruas. Em qualquer lugar do mundo em que se comente isso as pessoas ficam tristes. O instinto de todos é o de querer proteger as crianças, seja lá de qual país.
Quando uso o termo órfão, pretendo dar conta dessa idéia de que todos temos de sair do abrigo que nos cerca. Alguns acabam saindo desse processo com a idéia louca de que devem deixar o mundo parecido com o que era em suas infâncias. Frequentemente há um pedaço de nós que olha para trás e anseia por um tempo ingênuo.

Folha - Christopher Banks, personagem central de "Quando Éramos Órfãos", é bastante ingênuo, não? Há momentos do livro em que ele age como criança. Por exemplo, quando no meio de uma batalha terrível entre chineses e japoneses ele procura deslocar um grupo de soldados para procurar o lugar em que ele acredita que seus pais estivessem presos, sendo que eles haviam sido sequestrados 20 anos antes. É quase surreal, não?
Ishiguro -
Você está certo, ele não liga para tudo o que lhe cerca, só quer satisfazer seu pequeno desejo pessoal. Claro que esse é um caso extremo. O que isso mostra é que há um lado irracional de muitos de nós que frequentemente quer destruir muito daquilo que nos cerca, ou mostrar-se indiferente.
É claro que pintei a coisa de modo exagerado, mas todos conhecemos pessoas que tenham necessidade de agir autodestrutivamente por conta disso. É o que acontece com muitos que bebem pesadamente ou que sempre se envolvem em relacionamentos com pessoas violentas.

Folha - O inglês Christopher Banks tem dificuldade de lidar com seu passado, sua infância no Oriente. Como o sr., que mudou aos 5 anos do Japão para a Inglaterra, se relaciona com esse aspecto do seu passado? Quais as afinidades entre o sr. e Banks?
Ishiguro -
Existem poucas similaridades entre a minha situação e a de Christopher Banks. Não sou um escritor autobiográfico. Meu relacionamento com meus personagens é muito mais complicado. Na verdade, as experiências de Christopher Banks que descrevo são quase opostas às minhas. Acho que o que ele sente quando vai de Xangai para a Inglaterra talvez se aproxime do que senti quando já era adulto e voltei pela primeira vez ao Japão, para passar duas semanas. O que acontece com Banks? Ele cresce em Xangai sendo ensinado que era inglês. Quando ele vai para lá, tem a impressão de que está indo para o país ao qual ele pertence. Mas ele não se ajusta. A minha experiência foi diferente. Vim do Japão e a Inglaterra parecia totalmente estrangeira para mim. Anos depois, quando voltei ao Japão, aquilo sim me pareceu estrangeiro.

Folha - Em "Quando Éramos Órfãos", o sr. escreve que Christopher Banks e o amigo dele, o japonês Akira, tinham uma brincadeira que era ver quem chorava primeiro, japoneses ou ingleses. O sr. que é um japonês naturalizado inglês pode responder. Quem chora primeiro?
Ishiguro -
É uma pergunta que nunca escutei (risos). É interessante. Tanto para os ingleses quanto para os japoneses é realmente importante não chorar primeiro. Essas duas culturas colocam uma gigantesca importância nisso. Já estive no Brasil uma vez, mas não consegui saber como vocês lidam com o choro.

Folha - Como foi a viagem do sr. ao Brasil?
Ishiguro -
Foi fascinante. Nunca esquecerei um bocado de coisas do Brasil. Nunca esquecerei de quando assisti uma partida de futebol, de noite, na praia de Copacabana. Nunca esquecerei nem mesmo do hotel, o Copacabana Palace. Cheguei aí em 1990 e tudo estava em ebulição. O presidente Collor tinha sido eleito e prometia uma série de coisas absurdas. Depois fiquei sabendo do epílogo, da coisa toda do impeachment.
Uma coisa que me fascinou no brasileiro foi o conceito do geto.

Folha - Geto?
Ishiguro -
A forma como se usa uma espécie de truque para conseguir um atalho, para resolver as coisas de modo mais rápido do que se fosse pelo caminho oficial...

Folha - Ah, jeito. O chamado jeitinho brasileiro?
Ishiguro -
Isso. Aprendi que essa é uma forma de sobrevivência na sociedade brasileira. O respeito pelas regras vai ficando cada vez menos importante. A vida brasileira, muitos me dizem, é muito difícil, é quase "kafkiana".
Você sabe que de certa forma "Quando Éramos Órfãos" nasceu embalado por uma noção brasileira. A de "soldado" (saudade). É uma noção muito interessante.
Falamos sobre personagens como Christopher Banks estar ao mesmo tempo em Xangai e em Londres, e não estar em lugar algum. Essa me parece a essência da saudade. A nostalgia que os portugueses tinham de Portugal quando estavam no Brasil e a que eles sentiam do Brasil quando em Portugal. Em "Quando Éramos Órfãos" quero mostrar esse sentimento.

Folha - Em 1997 o escritor Martin Amis lançou seu primeiro romance policial, "Trem Noturno". Até que ponto essa decisão de seu companheiro de geração e de país lhe influenciou a usar o gênero policial em "Quando Éramos Órfãos"?
Ishiguro -
Gosto muito de Amis, mas nem mesmo li "Trem Noturno". Pelo que sei, Amis usou um modelo norte-americano de romance policial. Eu procurei algo mais semelhante às histórias de detetives da Inglaterra do início dos anos 20. As pessoas conhecem Agatha Christie no Brasil?

Folha - Muito bem.
Ishiguro -
É mais ou menos isso que eu queria como pano de fundo. Os romances ingleses de mistério frequentemente retratavam uma comunidade tranquila em que tudo é absolutamente idílico, com exceção de algo que dá errado, um assassinato que ninguém sabe quem cometeu. Existe uma noção nesses livros de que o mal é difícil de ser contido. Então um investigador vem de fora e detecta de onde o mal vem.
Tudo retorna a ser perfeito e, mesmo com o trauma de ter vivenciado um assassinato, essas pequenas vilas voltam a um estado de plena felicidade no final. O que vejo expresso nesses livros é um desejo de que a natureza do mal fosse simples. E as pessoas que liam esses livros haviam experimentado a guerra moderna, a Primeira Guerra Mundial, e sabiam bem que a verdadeira natureza do mal não era nada simples.


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