|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO GABEIRA
Novas cenas no palco principal
O fracasso de Bush só demonstra os erros de sua política; não revela os caminhos da paz
A RODA rodou no centro do
mundo, pelo menos no palco
principal. Joaquim Nabuco
falava sempre dos palcos principais,
onde se decidia o destino da humanidade. Isso lhe valeu uma crítica de
Mário de Andrade, que, numa carta
a Drummond, mencionou esse
olhar para fora como a doença de
Nabuco.
O mundo de hoje atenua os pecados do deputado pernambucano. O
que aconteceu nas eleições americanas tem uma influência direta na
crise do Oriente Médio e no combate ao aquecimento global, dois problemas de peso.
Os erros cometidos na Guerra do
Iraque remetem-me ao movimento
intelectual que justificou essa canoa
furada. São os neoconservadores,
que hoje já não existem de forma organizada. Sua certeza teórica contribuiu para fortalecer a missão norte-americana e, no seu idealismo, lembram os bolcheviques.
Já os aproximava um pouco na
minha análise, mas a hipótese foi
confirmada por quem conhece melhor o pensamento conservador:
John Gray.
Num livro intitulado "Além da
Nova Direita", ele menciona o triunfo liberal na Inglaterra e afirma que,
por mais provisório que tenha sido,
continha a mesma falsa promessa
do marxismo: desvendar o enigma
da história.
Se estivesse vivo, outro pensador
liberal, Isaiah Berlin, talvez enquadrasse neoconservadores entre os
intelectuais românticos que, detendo apenas uma parte do conhecimento da história, marcham por ela,
como se não estivessem tateando no
escuro, mas como se conhecessem
toda a realidade e tivessem a chave
de sua transformação.
Anos de certeza triunfante permitem inúmeros deslizes nos detalhes.
O diplomático, como afirmar que alguns países europeus são velhos; o
patriótico, como a proposta de um
parlamentar de substituir batatas
francesas por batatas da liberdade; e
o inexplicável, como o de Tony Blair
afirmando que o Iraque poderia
acionar suas armas de destruição
em massa, num prazo de não mais
do que 45 minutos.
A vitória democrata talvez não faça surgir nenhuma corrente nova de
pensamento. O simples fato de quebrar um pouco a rigidez acadêmica e
editorial pós-11 de Setembro e sugerir uma abertura maior para a crise
ambiental pode significar uma certa
renascença.
Os norte-americanos não ignoram a força de um soft power. No
passado, enviavam Louis Armstrong e o Modern Jazz Quartet como seus embaixadores culturais.
Eles podem reinventar essa política,
em novos termos.
O que me parece ainda problemático é o avanço dos direitos civis, que
parecia irreversível até o 11 de Setembro. O nível de controle das comunicações, esquadrinhando as
mensagens, as medidas de segurança em aeroportos, o rigor na concessão de vistos, tudo isso prossegue.
Só um longo processo de estabilidade poderá provocar uma revisão,
embora ainda exista um entulho de
medidas produzidas pela guerra, um
inquietante debate sobre a tortura.
Se existe um túnel para se atravessar, é o Oriente Médio. Não vai ser
fácil sair do Iraque, nem articular essa saída com a crise entre Israel e Palestina. O fracasso de Bush demonstra apenas os erros de sua política.
Mas não revela, por si só, os caminhos da paz.
Se estamos condenados ali a uma
tarefa de Sísifo, vamos pelo menos
começar de novo a subir com a pedra. A presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, numa de suas
primeiras manifestações, falou no
projeto de todos os norte-americanos de acesso com banda larga a rede de computadores.
Quem sabe um trânsito para o conhecimento e suas riquezas não signifique um caminho para atenuar os
impulsos bélicos? As guerras têm
aberto grandes feridas na sociedade
americana. Possivelmente, o fracasso ali tenha estimulado a certeza da
invasão do Iraque. Com duas guerras na mesa, talvez os americanos vivam agora o que alguns socialistas
viveram na Hungria e, depois, na antiga Tchecoslováquia: a compreensão de que, por melhor que pareça o
seu sistema político, ele perde legitimidade quando imposto com armas, de fora para dentro.
A roda rodou e também trará diferenças para o Brasil, com mais rigor
nos acordos comerciais. Por outro
lado, haverá mais abertura para cooperação ecológica. Ainda não dá para desenhar todo o quadro. Mesmo
com Bush no governo, alguma coisa
se pôs em movimento .
Uma nova leva de salvadores do
mundo vai para os escaninhos da
história com a certeza dos neoconservadores.
Texto Anterior: Crítica/música/dança: Música de Mehmari nos corpos do Cisne Negro Próximo Texto: Concursos injetam R$ 6 mi no cinema Índice
|