São Paulo, sábado, 18 de novembro de 2006

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FERNANDO GABEIRA

Novas cenas no palco principal

O fracasso de Bush só demonstra os erros de sua política; não revela os caminhos da paz

A RODA rodou no centro do mundo, pelo menos no palco principal. Joaquim Nabuco falava sempre dos palcos principais, onde se decidia o destino da humanidade. Isso lhe valeu uma crítica de Mário de Andrade, que, numa carta a Drummond, mencionou esse olhar para fora como a doença de Nabuco.
O mundo de hoje atenua os pecados do deputado pernambucano. O que aconteceu nas eleições americanas tem uma influência direta na crise do Oriente Médio e no combate ao aquecimento global, dois problemas de peso.
Os erros cometidos na Guerra do Iraque remetem-me ao movimento intelectual que justificou essa canoa furada. São os neoconservadores, que hoje já não existem de forma organizada. Sua certeza teórica contribuiu para fortalecer a missão norte-americana e, no seu idealismo, lembram os bolcheviques.
Já os aproximava um pouco na minha análise, mas a hipótese foi confirmada por quem conhece melhor o pensamento conservador: John Gray.
Num livro intitulado "Além da Nova Direita", ele menciona o triunfo liberal na Inglaterra e afirma que, por mais provisório que tenha sido, continha a mesma falsa promessa do marxismo: desvendar o enigma da história.
Se estivesse vivo, outro pensador liberal, Isaiah Berlin, talvez enquadrasse neoconservadores entre os intelectuais românticos que, detendo apenas uma parte do conhecimento da história, marcham por ela, como se não estivessem tateando no escuro, mas como se conhecessem toda a realidade e tivessem a chave de sua transformação.
Anos de certeza triunfante permitem inúmeros deslizes nos detalhes. O diplomático, como afirmar que alguns países europeus são velhos; o patriótico, como a proposta de um parlamentar de substituir batatas francesas por batatas da liberdade; e o inexplicável, como o de Tony Blair afirmando que o Iraque poderia acionar suas armas de destruição em massa, num prazo de não mais do que 45 minutos.
A vitória democrata talvez não faça surgir nenhuma corrente nova de pensamento. O simples fato de quebrar um pouco a rigidez acadêmica e editorial pós-11 de Setembro e sugerir uma abertura maior para a crise ambiental pode significar uma certa renascença.
Os norte-americanos não ignoram a força de um soft power. No passado, enviavam Louis Armstrong e o Modern Jazz Quartet como seus embaixadores culturais. Eles podem reinventar essa política, em novos termos.
O que me parece ainda problemático é o avanço dos direitos civis, que parecia irreversível até o 11 de Setembro. O nível de controle das comunicações, esquadrinhando as mensagens, as medidas de segurança em aeroportos, o rigor na concessão de vistos, tudo isso prossegue.
Só um longo processo de estabilidade poderá provocar uma revisão, embora ainda exista um entulho de medidas produzidas pela guerra, um inquietante debate sobre a tortura.
Se existe um túnel para se atravessar, é o Oriente Médio. Não vai ser fácil sair do Iraque, nem articular essa saída com a crise entre Israel e Palestina. O fracasso de Bush demonstra apenas os erros de sua política. Mas não revela, por si só, os caminhos da paz.
Se estamos condenados ali a uma tarefa de Sísifo, vamos pelo menos começar de novo a subir com a pedra. A presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, numa de suas primeiras manifestações, falou no projeto de todos os norte-americanos de acesso com banda larga a rede de computadores.
Quem sabe um trânsito para o conhecimento e suas riquezas não signifique um caminho para atenuar os impulsos bélicos? As guerras têm aberto grandes feridas na sociedade americana. Possivelmente, o fracasso ali tenha estimulado a certeza da invasão do Iraque. Com duas guerras na mesa, talvez os americanos vivam agora o que alguns socialistas viveram na Hungria e, depois, na antiga Tchecoslováquia: a compreensão de que, por melhor que pareça o seu sistema político, ele perde legitimidade quando imposto com armas, de fora para dentro.
A roda rodou e também trará diferenças para o Brasil, com mais rigor nos acordos comerciais. Por outro lado, haverá mais abertura para cooperação ecológica. Ainda não dá para desenhar todo o quadro. Mesmo com Bush no governo, alguma coisa se pôs em movimento .
Uma nova leva de salvadores do mundo vai para os escaninhos da história com a certeza dos neoconservadores.


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