São Paulo, quarta-feira, 18 de novembro de 2009

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MARCELO COELHO

Marolinhas e apagões


Filmes da Grande Depressão põem em cena ideologias que não ressurgem facilmente


SOU NULO em economia e não me considero nem de longe um cinéfilo. Mas começo falando um pouco da crise e, depois, de um clássico do cinema.
No ano passado, o mundo estava em plena catástrofe. Tudo indica que não está mais, embora o desemprego nos Estados Unidos continue batendo recordes.
Voltam as preocupações com o excesso de euforia em alguns lugares, e nada me tira o medo de que, depois da bolha das "subprimes", estejamos em plena bolha do Brasil.
Seja como for, esperava-se bem mais da crise de 2008. Mal comparando, esse colapso tem algo em comum com o blecaute da semana passada e com o caso paralelo da viga que desabou no Rodoanel.
O apagão seria o Waterloo da candidatura Dilma Rousseff -e eis que, numa ironia do noticiário, a principal obra do governo Serra despencou logo em seguida. Vejo até um certo entrecho de Grécia Antiga nesse toma lá, dá cá: Zeus castigando Dilma com seus raios, mas incapaz de proteger Serra dos ataques de Hera ou Palas Atena.
No ano passado, pitonisas e cassandras que andavam bastante adormecidas tomaram a palavra.
Estaríamos presenciando o fim do neoliberalismo; o colapso do Lehmann Brothers seria o equivalente, em sentido inverso, à queda do Muro de Berlim. De minha parte, fico quieto diante de tantas estridências.
Reparo só em uma coisa: a crise de 1929, que deu tanta força ideológica à esquerda e ao fascismo, ocorreu há 80 anos. É muito tempo.
Basta dizer que, durante a Grande Depressão, economistas e governos mal dispunham de números para analisar. Quem pega o livro "Uma Senhora Toma Chá...", de David Salsburg (editora Jorge Zahar), fica assustado com as resistências gerais, já quase em meados do século, a princípios básicos da estatística.
Sem contar com o pavor norte-americano face a qualquer atuação governamental naqueles tempos.
Digo isso depois de ver um DVD recém-lançado pela Platina Filmes que traz "O Pão Nosso", filme do diretor King Vidor datado (e como!) de 1934, além de seis documentários curtos, filmados nos anos da Grande Depressão. Um destes, dirigido pelo cineasta holandês Joris Ivens (1898-1989), dedica-se a explicar longamente a utilidade da luz elétrica para os fazendeiros americanos.
O filme dá muitas voltas para vender o seu peixe: é o governo federal que vai ajudar os agricultores a criarem suas próprias cooperativas de energia. Joris Ivens toma cuidado para não deixar o espectador em estado de choque.
Mais cooperativista ainda é "O Pão Nosso", cujas cenas de labuta agrícola e disciplina coletiva poderiam perfeitamente ser usadas no cinema de propaganda soviético ou chinês. Para quem gosta de ideologia em estado puro, "O Pão Nosso" é um verdadeiro banquete. A ideia não é negar a realidade: a falta de emprego e a crise estão na base da história.
Mas isso é algo típico de toda ideologia: a realidade tem de ser levada em conta, para ser melhor neutralizada. O puro escapismo de Hollywood é, sem dúvida nenhuma, menos ideológico do que mostrar um casal de artistas de cinema, lindos e impecavelmente vestidos, sofrendo (entre sorrisos) com o endividamento e o desemprego.
O par americano perfeito se lança ao desconhecido: a salvação para eles, e também para o país, está em lavrar a terra. Logo se organiza uma comunidade, juntando alguns retirantes de Minnesota, um comerciante judeu, um fugitivo da polícia, uma moça de maus costumes, um professor de violino...
Como se todos os personagens de outros filmes de Hollywood, sem vagas para trabalhar, se reunissem numa fazenda utópica onde tudo (sem a ajuda do governo, mas com transparente socialismo na alma) haverá de dar certo.
Nos momentos em que isso acontece, o filme comove. Uma panorâmica sobre o terreno recém-arado, onde cada pessoa contribuiu para a ordem e a igualdade próspera da paisagem, mostra o poder de King Vidor como diretor.
Mostra, acima de tudo, o quanto uma crise econômica daquelas proporções dava ímpeto para convicções de esquerda, por mais que envoltas em linguagem folhetinesca.
Estamos muito longe de uma crise assim, na economia e na política. A esquerda não renasceu com os tropeções de 2008. A não ser para os que chamam Barack Obama de "socialista"; mas convenhamos que isso já é querer demais.

coelhofsp@uol.com.br

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