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RODAPÉ
O mago, o poeta e o "serial killer"
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
A editora Asa, do Porto,
vem publicando em Portugal a coleção "Literatura ou Morte", da Companhia das Letras, na
qual autores contemporâneos
transformam grandes escritores
em personagens de intrigas policiais -como em "Borges e os
Orangotangos Eternos", de Luis
Fernando Verissimo, e "Os Leopardos de Kafka", do colunista da
Folha Moacyr Scliar.
O projeto gráfico é idêntico e os
títulos são praticamente os mesmos, mas a Asa resolveu dar uma
contribuição para a coleção, convidando o jornalista e romancista
Manuel Jorge Marmelo para escrever uma narrativa dentro dos
mesmos moldes. O resultado é
"Os Fantasmas de Pessoa", livro
que parte de um episódio real da
vida do poeta português: seu encontro com o mago inglês Aleister
Crowley, em Lisboa, em 1930.
A trajetória de Crowley é, por si
só, um romance. Nascido em
1875, praticou todo tipo de ocultismo, misturando subversão e
charlatanismo. Dizem seus biógrafos que, quando criança, costumava cuspir na água-benta para atrair a ira divina. Adulto, queria ser chamado de "Besta 666"
(em referência ao Apocalipse) e,
após freqüentar sociedades secretas da tradição Rosa Cruz, escreveu um livro de memórias cujo
subtítulo nada modesto era "Uma
Auto-Hagiografia" (ou seja, a autobiografia de um santo).
Batizadas de "Confissões", essas
memórias seriam lidas por Fernando Pessoa, que identificou um
erro no mapa astral de Crowley.
Segue-se uma troca de correspondências entre os dois, culminando
no desembarque de Crowley em
Portugal, onde simula seu desaparecimento na Boca do Inferno
(formação rochosa de Cascais),
após deixar um enigmático bilhete para o poeta.
Por mais inverossímil que seja,
isso é rigorosamente verdade e
ressurge de forma romanceada
no livro de Marmelo. A partir desses dados, porém, ele mistura traços biográficos das duas personagens, transformando o livro numa rede de citações ocultas que
fará as delícias dos decifradores.
Assim, Crowley (que Marmelo
estranhamente grafa "Crawley")
surge como última reencarnação
de um conde siciliano que, depois
de peregrinações pelo Oriente
Médio e de fundar em Viena a Ordem Maçônica Egipcíaca, acaba
seus dias em Roma, onde morre
na prisão suspirando a frase
"Quero acabar entre as rosas, porque as amei na infância".
Ocorre que este é o primeiro
verso de um poema de Álvaro de
Campos, um dos heterônimos de
Pessoa. Ou seja, o "antepassado"
do mago é também precursor de
um desses poetas imaginários,
com biografia e obra autônoma,
que o escritor português inventou
para expressar a pluralidade da
experiência moderna.
De resto, as simpatias de Pessoa
por astrologia, teosofia e ciências
ocultas (a ponto de ter criado como "alter ego" o astrólogo Rafael
Baldaya) sugerem que os heterônimos eram fantasmas bem reais,
aos quais Marmelo acrescenta
mais um: o fantasma do homossexualismo, que estaria revelado
nas cartas desaparecidas que ele
escreveu para o poeta suicida Mário de Sá-Carneiro -cartas que,
em mais um cruzamento entre
verdade e ficção, estariam em poder de Crowley.
Não bastasse essa barafunda,
Marmelo introduz outro elemento. Segundo nota introdutória, a
narrativa do encontro de Pessoa
com Crowley seria um romance
inacabado, cujos manuscritos tinham sido encontrados nos escombros de um prédio, no Porto,
ao lado de um diário em que o autor comentava seu projeto.
"Os Fantasmas..." alterna, portanto, a história romanesca e trechos do diário -e é aqui que aparece a parte criminosa da trama,
pois o anônimo autor é, como o
mago inglês, um charlatão sedento de fama, que vai cometendo assassinatos à maneira de um "serial killer", deixando nas mãos de
suas vítimas trechos de poemas
de Pessoa e de escritos de Crowley, de modo a chamar a atenção
para o romance em gestação.
Seria um outro tipo de crime revelar o desfecho de um livro de
suspense. Resta torcer, portanto,
que a Companhia das Letras publique por aqui essa intrincada e
envolvente versão lusitana de "Literatura ou Morte".
Os Fantasmas de Pessoa
Autor: Manuel Jorge Marmelo
Editora: Asa
Quanto: 10 euros (cerca de R$ 36); 128 págs.
Onde encontrar: livraria Portugal (tel.
0/xx/11/3159-2548)
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