São Paulo, sábado, 18 de dezembro de 2004

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RODAPÉ

O mago, o poeta e o "serial killer"

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A editora Asa, do Porto, vem publicando em Portugal a coleção "Literatura ou Morte", da Companhia das Letras, na qual autores contemporâneos transformam grandes escritores em personagens de intrigas policiais -como em "Borges e os Orangotangos Eternos", de Luis Fernando Verissimo, e "Os Leopardos de Kafka", do colunista da Folha Moacyr Scliar.
O projeto gráfico é idêntico e os títulos são praticamente os mesmos, mas a Asa resolveu dar uma contribuição para a coleção, convidando o jornalista e romancista Manuel Jorge Marmelo para escrever uma narrativa dentro dos mesmos moldes. O resultado é "Os Fantasmas de Pessoa", livro que parte de um episódio real da vida do poeta português: seu encontro com o mago inglês Aleister Crowley, em Lisboa, em 1930.
A trajetória de Crowley é, por si só, um romance. Nascido em 1875, praticou todo tipo de ocultismo, misturando subversão e charlatanismo. Dizem seus biógrafos que, quando criança, costumava cuspir na água-benta para atrair a ira divina. Adulto, queria ser chamado de "Besta 666" (em referência ao Apocalipse) e, após freqüentar sociedades secretas da tradição Rosa Cruz, escreveu um livro de memórias cujo subtítulo nada modesto era "Uma Auto-Hagiografia" (ou seja, a autobiografia de um santo).
Batizadas de "Confissões", essas memórias seriam lidas por Fernando Pessoa, que identificou um erro no mapa astral de Crowley. Segue-se uma troca de correspondências entre os dois, culminando no desembarque de Crowley em Portugal, onde simula seu desaparecimento na Boca do Inferno (formação rochosa de Cascais), após deixar um enigmático bilhete para o poeta.
Por mais inverossímil que seja, isso é rigorosamente verdade e ressurge de forma romanceada no livro de Marmelo. A partir desses dados, porém, ele mistura traços biográficos das duas personagens, transformando o livro numa rede de citações ocultas que fará as delícias dos decifradores.
Assim, Crowley (que Marmelo estranhamente grafa "Crawley") surge como última reencarnação de um conde siciliano que, depois de peregrinações pelo Oriente Médio e de fundar em Viena a Ordem Maçônica Egipcíaca, acaba seus dias em Roma, onde morre na prisão suspirando a frase "Quero acabar entre as rosas, porque as amei na infância".
Ocorre que este é o primeiro verso de um poema de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Pessoa. Ou seja, o "antepassado" do mago é também precursor de um desses poetas imaginários, com biografia e obra autônoma, que o escritor português inventou para expressar a pluralidade da experiência moderna.
De resto, as simpatias de Pessoa por astrologia, teosofia e ciências ocultas (a ponto de ter criado como "alter ego" o astrólogo Rafael Baldaya) sugerem que os heterônimos eram fantasmas bem reais, aos quais Marmelo acrescenta mais um: o fantasma do homossexualismo, que estaria revelado nas cartas desaparecidas que ele escreveu para o poeta suicida Mário de Sá-Carneiro -cartas que, em mais um cruzamento entre verdade e ficção, estariam em poder de Crowley.
Não bastasse essa barafunda, Marmelo introduz outro elemento. Segundo nota introdutória, a narrativa do encontro de Pessoa com Crowley seria um romance inacabado, cujos manuscritos tinham sido encontrados nos escombros de um prédio, no Porto, ao lado de um diário em que o autor comentava seu projeto.
"Os Fantasmas..." alterna, portanto, a história romanesca e trechos do diário -e é aqui que aparece a parte criminosa da trama, pois o anônimo autor é, como o mago inglês, um charlatão sedento de fama, que vai cometendo assassinatos à maneira de um "serial killer", deixando nas mãos de suas vítimas trechos de poemas de Pessoa e de escritos de Crowley, de modo a chamar a atenção para o romance em gestação.
Seria um outro tipo de crime revelar o desfecho de um livro de suspense. Resta torcer, portanto, que a Companhia das Letras publique por aqui essa intrincada e envolvente versão lusitana de "Literatura ou Morte".


Os Fantasmas de Pessoa
    
Autor: Manuel Jorge Marmelo
Editora: Asa
Quanto: 10 euros (cerca de R$ 36); 128 págs.
Onde encontrar: livraria Portugal (tel. 0/xx/11/3159-2548)



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