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CRÍTICA
Com realismo, romance individualiza drama histórico
MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Um Lugar Chamado Brick
Lane" (2003), de Monica
Ali, pode até ser considerado um
romance político: na saga de sua
protagonista, uma imigrante de
Bangladesh em Londres, revela-se
um painel da vida muçulmana no
exílio ocidental antes, durante e
depois do 11 de Setembro. Estão
ali os eternos conflitos de identidade cultural, a condição feminina no Islã e a gênese do ódio e do
radicalismo religioso numa sociedade de valores em crise.
Mas essa é uma leitura pouco
generosa, que ressalta o aspecto
menos consistente de uma autora
que, aos 36 anos, ganhou o British
Book Award Newcomer of the
Year, foi finalista do Booker Prize
e incluída na tradicional lista de
"promessas literárias" da revista
inglesa "Granta". Afinal, o que
Monica Ali teria a dizer sobre as
causas do ataque às Torres Gêmeas, por exemplo, que os jornais
já não tivessem extensivamente
reiterado? O desafio inicial do seu
romance era outro: individualizar
o drama histórico, usar sua experiência de também imigrante para
fazê-lo soar único.
Para tanto, ela apostou em atributos literários algo fora de moda.
Em meio a uma ficção difusa e deliberadamente incômoda como a
contemporânea, "Brick Lane"
aposta num charme realista e
quase folhetinesco. A maneira de
contar histórias por vezes tem a
generosidade de um Gabriel García Márquez: cada cheiro descrito,
cada gosto recuperado, cada
emoção que se insinua está presente para cortejar o leitor, para
tentar encantá-lo ao longo de extensas 471 páginas.
Não é um caminho sem acidentes, por certo. O relato começa hesitante, num tom ainda fabulístico e com frases de sabor best-seller ("Era um sentimento, uma facada nas costas"). Conta-se o nascimento de Nazneen, a protagonista, numa aldeia do então Paquistão Leste, em 1967. Um casamento arranjado na Inglaterra tira-a de sua família, de sua cultura,
de seus afetos. Num pequeno
apartamento em Brick Lane, ela
mata o tempo lendo longas (e às
vezes enfadonhas) cartas da irmã.
A vida em Bangladesh é brutal,
com adultos jogando ácido em
bebês e donos de fábrica aliciando
funcionárias, mas Londres não fica muito atrás: há drogas, desemprego e uma profunda solidão
nos limites intransponíveis da comunidade de "estrangeiros".
À medida que Nazneen perde
sua ingenuidade, a prosa de Monica Ali vai se tornando mais lúcida e precisa. Aos poucos, encontrando um equilíbrio entre a ironia e a compaixão, a autora finalmente fica à vontade para, seguindo as regras do gênero escolhido,
dar forma a personagens que devem ser "redondos", "reconhecíveis": o marido diplomado que vira motorista de táxi, a filha adolescente que recusa as tradições do
pai, a senhora agiota que explora
as fraquezas de seus conterrâneos, o fornecedor de tecidos tornado pivô de uma crise conjugal.
É o carisma deles, mais do que
discursos e referências factuais,
que impulsiona o livro para seu final sereno, anticlimático. Um
agudo senso de totalidade é o que
fica da última cena, quando Nazneen vê pela primeira vez a dança
de um patinador sobre o rinque.
Já que se falou em García Márquez, aqui se inverte a célebre
abertura de "Cem Anos de Solidão", que também falava do gelo e
de estréias. O que era apenas uma
descoberta de criança, no romance do autor colombiano, em
"Brick Lane" é o ponto final de
um rito de perdas e desencanto:
"O ziguezague de mil cicatrizes, as
cores que mudavam com a luz, a
natureza imutável do que havia
por baixo". É uma metáfora para
as relações entre indivíduo e memória, essência e experiência, bases que, no fim das contas, são o
alimento da boa literatura.
Michel Laub é autor dos romances "Música Anterior" e "Longe da Água" (ambos
da Companhia das Letras).
Um Lugar Chamado Brick Lane
Autor: Monica Ali
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Editora: Rocco
Quanto: R$ 52 (471 págs.)
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