São Paulo, sábado, 18 de dezembro de 2004

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CRÍTICA

Com realismo, romance individualiza drama histórico

MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Um Lugar Chamado Brick Lane" (2003), de Monica Ali, pode até ser considerado um romance político: na saga de sua protagonista, uma imigrante de Bangladesh em Londres, revela-se um painel da vida muçulmana no exílio ocidental antes, durante e depois do 11 de Setembro. Estão ali os eternos conflitos de identidade cultural, a condição feminina no Islã e a gênese do ódio e do radicalismo religioso numa sociedade de valores em crise.
Mas essa é uma leitura pouco generosa, que ressalta o aspecto menos consistente de uma autora que, aos 36 anos, ganhou o British Book Award Newcomer of the Year, foi finalista do Booker Prize e incluída na tradicional lista de "promessas literárias" da revista inglesa "Granta". Afinal, o que Monica Ali teria a dizer sobre as causas do ataque às Torres Gêmeas, por exemplo, que os jornais já não tivessem extensivamente reiterado? O desafio inicial do seu romance era outro: individualizar o drama histórico, usar sua experiência de também imigrante para fazê-lo soar único.
Para tanto, ela apostou em atributos literários algo fora de moda. Em meio a uma ficção difusa e deliberadamente incômoda como a contemporânea, "Brick Lane" aposta num charme realista e quase folhetinesco. A maneira de contar histórias por vezes tem a generosidade de um Gabriel García Márquez: cada cheiro descrito, cada gosto recuperado, cada emoção que se insinua está presente para cortejar o leitor, para tentar encantá-lo ao longo de extensas 471 páginas.
Não é um caminho sem acidentes, por certo. O relato começa hesitante, num tom ainda fabulístico e com frases de sabor best-seller ("Era um sentimento, uma facada nas costas"). Conta-se o nascimento de Nazneen, a protagonista, numa aldeia do então Paquistão Leste, em 1967. Um casamento arranjado na Inglaterra tira-a de sua família, de sua cultura, de seus afetos. Num pequeno apartamento em Brick Lane, ela mata o tempo lendo longas (e às vezes enfadonhas) cartas da irmã. A vida em Bangladesh é brutal, com adultos jogando ácido em bebês e donos de fábrica aliciando funcionárias, mas Londres não fica muito atrás: há drogas, desemprego e uma profunda solidão nos limites intransponíveis da comunidade de "estrangeiros".
À medida que Nazneen perde sua ingenuidade, a prosa de Monica Ali vai se tornando mais lúcida e precisa. Aos poucos, encontrando um equilíbrio entre a ironia e a compaixão, a autora finalmente fica à vontade para, seguindo as regras do gênero escolhido, dar forma a personagens que devem ser "redondos", "reconhecíveis": o marido diplomado que vira motorista de táxi, a filha adolescente que recusa as tradições do pai, a senhora agiota que explora as fraquezas de seus conterrâneos, o fornecedor de tecidos tornado pivô de uma crise conjugal.
É o carisma deles, mais do que discursos e referências factuais, que impulsiona o livro para seu final sereno, anticlimático. Um agudo senso de totalidade é o que fica da última cena, quando Nazneen vê pela primeira vez a dança de um patinador sobre o rinque.
Já que se falou em García Márquez, aqui se inverte a célebre abertura de "Cem Anos de Solidão", que também falava do gelo e de estréias. O que era apenas uma descoberta de criança, no romance do autor colombiano, em "Brick Lane" é o ponto final de um rito de perdas e desencanto: "O ziguezague de mil cicatrizes, as cores que mudavam com a luz, a natureza imutável do que havia por baixo". É uma metáfora para as relações entre indivíduo e memória, essência e experiência, bases que, no fim das contas, são o alimento da boa literatura.


Michel Laub é autor dos romances "Música Anterior" e "Longe da Água" (ambos da Companhia das Letras).

Um Lugar Chamado Brick Lane
   
Autor: Monica Ali
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Editora: Rocco
Quanto: R$ 52 (471 págs.)


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