São Paulo, segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

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Crítica/erudito

Salmaso ilumina fim de ano da Osesp

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Já é a terceira vez que a Osesp recebe a Banda Mantiqueira para o último concerto da temporada, que é também gravado ao vivo e vira disco.
Em 2002, foi só a Banda; em 2004, os 14 virtuoses mais a cantora Luciana Souza; e agora Mônica Salmaso, encerrando, ela também, uma temporada gloriosa, e gloriosamente exibindo os sete meses do bebê na barriga.
O próprio maestro Neschling falou com orgulho, na quinta-feira, dessas empreitadas de "crossover". Mas o termo soa ainda mais desajeitado que de hábito nesse caso. Tendo em vista a qualidade das canções e a inserção que elas têm na nossa cultura, sem falar no engenho arrojado desses arranjos, feitos sob encomenda para a ocasião, talvez o melhor fosse simplesmente falar de música brasileira, ponto. (Isso inclui o arranjo de Nelson Ayres para "Uno", tango de Mariano Mores.)
Veja-se o caso de "Beijo Partido" (1980), a estrambótica canção de Toninho Horta, apresentada aqui numa recriação de Alexandre Mihanovich. Começa com a melodia em uníssono nas flautas e violoncelos e vai passando por uma sucessão de repetições contrastantes, até terminar com harmonias que parecem memórias fantásticas de Richard Strauss no interior de Minas.
Ou as belezas delicadamente contundentes do arranjo de Proveta -o grande maestro da Mantiqueira, regendo tudo de dentro com seu clarinete e seu sax- para "Beatriz" (1982), de Edu Lobo e Chico Buarque, que Mônica Salmaso cantou fazendo valer ao máximo o timbre agudo da voz.
Cada vez mais a soprano com jeito de contralto gosta de mostrar essas notas agudas. E o arranjo de André Mehmari para "Eu Te Amo" (1980), de Tom Jobim e Chico Buarque, partiu do baixo cromático da famosa ária de morte da Rainha Dido, na ópera "Dido and Aeneas" de Purcell (1659-95), alegorizando motivos até chegar às alturas do "Ah, se já perdemos a noção da hora...", que revela a voz, de súbito, para depois ir caindo, lenta e retrato-em-branco-e-pretamente até as profundezas do amor que acabou.
Cantar, para Mônica, virou mesmo uma arte do ar: do pouco ar, do mínimo necessário para o máximo de expressão. E também da prosódia (ajuste entre palavras e música), da escansão (pronúncia silábica), da agógica (acelerações e retardos). Exemplo: "me explica COM que CA-ra eu vou sa-IR", a frase acelerando e desacelerando, sofrida e contida.
Ainda bem que tudo isso vai virar disco. Não só pelo prazer de ouvir de novo, mas também porque corrigirá os problemas do som ao vivo: a amplificação da voz, em especial, deixava a desejar, seja por certo mascaramento do timbre, seja pelo volume às vezes baixo, que escondia a cantora na orquestra.
Quem não se deixa esconder, nem daria, é o Proveta, cultuado antiguru, na primeira fileira da Banda, no meio da Osesp.
Seu rosto escutando o próprio arranjo de "Beatriz" era a imagem da felicidade, perdido, sem jamais estar perdido, no meio da música. Muita música: Noel Rosa, Tom Zé, João Donato, Caetano, Gordurinha, Guinga (e arranjadores como Roberto Sion, Laerte de Freitas, Chiquinho de Moares, Edson Alves).
Quem não quer se perder com ele, com eles, com ela, no meio disso tudo?


OSESP, MÔNICA SALMASO E BANDA MANTIQUEIRA
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