São Paulo, terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BERNARDO CARVALHO

O novo academicismo


Ele não mais promove técnicas clássicas, mas está calcado em regras de um ideal "coletivo"


EM 1948 , aos 78 anos, quando trabalhava na decoração da capela de Vence, no sul da França, Henri Matisse confidenciou ao padre Couturier: "Durante toda a minha vida, me senti acuado porque não pintava como os outros".
A frase, citada numa nota de pé de página, em "Matisse - Escritos e Reflexões sobre Arte" (Cosac Naify), soa como uma epifania -ainda mais hoje, quando as regras de um novo academicismo vêm travestidas de intervenção política e aparente repúdio ao mercado. A frase de Matisse revela um dos fundamentos mais libertários da arte moderna: a afirmação da autoria como individualidade irredutível.
"As regras não existem fora dos indivíduos; caso contrário, qualquer professor seria tão genial quanto Racine", escreve o pintor em uma de suas notas.
A arte contemporânea, em compensação, parece cada vez mais uma "arte de professores", o que explica que muitos dos seus ideólogos volta e meia tentem derrubar o princípio de irredutibilidade individual da arte moderna em nome de um ideal oportunista de "coletivo", munidos de argumentos contraditórios, que correspondem tanto a uma equivocada reação política (o indivíduo seria uma invenção da burguesia, assim como a idéia de autoria individual) como às determinações da hora (a serviço do mercado, dão declarações tão contestáveis quanto a de que a pintura morreu ou ressuscitou, segundo tendências da moda).
É claro que esse novo academicismo já não promove as técnicas clássicas da pintura ou da escultura, o que seria profundamente anacrônico e caricatural, mas nem por isso deixa de permanecer assentado sobre regras gerais e exteriores (a arte deve ser isto ou aquilo), que pressupõem antes de tudo a prevalência dos professores-curadores sobre os próprios artistas e suas obras.
Referindo-se à felicidade, num trecho citado na contracapa do livro, Matisse escreve: "Um artista nunca deve ser: prisioneiro de si mesmo, prisioneiro de um estilo, prisioneiro de uma reputação, prisioneiro de um sucesso etc. Não escreveram os Goncourt que os artistas japoneses da grande época mudavam de nome várias vezes ao longo da vida? Isso me agrada: eles queriam preservar a liberdade".
Um artista tampouco deve ser prisioneiro das regras que o seu tempo tenta lhe impor: "É por isso que a criação, para o artista, começa pela visão. Ver já é uma operação criativa e que exige esforço. Tudo o que vemos na vida corrente sofre maior ou menor deformação gerada pelos hábitos adquiridos, e esse fato talvez seja mais sensível numa época como a nossa, em que o cinema, a publicidade e as grandes lojas nos impõem diariamente um fluxo de imagens prontas, que, em certa medida, são para a visão aquilo que o preconceito é para a inteligência. O esforço necessário para se libertar delas exige uma espécie de coragem; e essa coragem é indispensável ao artista, que deve ver a vida toda como quando era criança".
Se, para pintar uma rosa, é preciso "esquecer todas as rosas pintadas", e se "é preciso resistir sempre, custe o que custar", também se faz necessário entender que as circunstâncias mudam e com elas as características daquilo a que se deve resistir em nome da verdade da criação.
Cada época tem o seu academicismo. E, antes de mais nada, é preciso ter coragem para acreditar no próprio caminho, quando todos em volta seguem por outro. Só por isso, este livro já valeria como um bálsamo num mundo onde hordas de artistas são formadas a cada ano em universidades que seguem quase que invariavelmente a mesma cartilha.
Quando passou pelos Estados Unidos, no entre-guerras, Matisse percebeu a iminência de uma grande arte: "É o amor ao risco que faz com que ali se destruam os resultados do dia, na esperança de que o amanhã dará melhores". Um risco equivalente ao "espírito aventureiro e a coragem indispensáveis a todo trabalho de criação" que antes ele reconhecia em Paris.
Em 1933, Matisse teria dito a André Masson: "Quando você conhecer os Estados Unidos, vai entender que um dia eles terão pintores, porque não é possível, num país desses, que oferece espetáculos visuais tão deslumbrantes, que algum dia não venham a existir pintores".
Em 1940, aos 70 anos, Matisse estava pronto para deixar a França ocupada pelos nazistas rumo ao Rio de Janeiro. "Estava com meu passaporte no bolso, com visto para o Brasil. (...) Foi quando vi as coisas tão destroçadas que pedi o reembolso da passagem. Eu me sentiria como se tivesse desertado." Ficou sem dizer a arte que teria pressentido aqui.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Música: Sandy e Junior fazem último show em SP
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.