São Paulo, Quarta-feira, 19 de Janeiro de 2000


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"O FANTASMA DO REI LEOPOLDO" - CRÍTICA
Livro relata genocídio esquecido pela história ocidental

JURANDIR MALERBA
especial para a Folha


O livro de Adam Hochschild, professor de jornalismo da Universidade de Berkeley (Califórnia), reverbera na mente do leitor. Trata-se de uma trama escrita em cadência quase ficcional, refinada elaboração que relata uma história de horrores -que a civilização ocidental praticamente apagou de sua memória- com estilo erudito e, ao mesmo tempo, coloquial.
Mas, para além de todos os inegáveis méritos históricos e literários, sua leitura ecoa e persiste na cabeça do leitor pelas analogias que suscita com o tempo presente.
O livro denuncia a história da pilhagem do reino do Congo "belga", tornada praticamente um feudo particular do rei Leopoldo 2º da Bélgica entre 1885 e 1909. Não é propriamente, nesse momento áureo do "imperialismo" clássico, a pilhagem de um território periférico efetuada por um país ocidental, pois o rei Leopoldo 2º montou uma empresa particular, sua, para exploração daquela porção do território africano.
Nessa virada de século, ele criou um exército mercenário para capturar escravos para trabalhar primeiro na produção do marfim, depois em minas e na coleta do látex para produção da borracha. Nessa empresa, esse exército queimou vilas inteiras e aplicou punições públicas com alto grau de crueldade e sadismo, como esquartejamento e assassinatos em massa.
O herói dessa narrativa cruenta é um agente portuário de Liverpool, Edmund Morel, que um dia estranhou o movimento de navios que chegavam carregados do Congo com marfim, bronze e outras riquezas, mas que retornavam cheio de tropas pesadamente armadas e munidas. Ali, percebeu que se tratava de uma "troca desigual". Morel abandonou então seu emprego para se tornar um tipo de jornalista investigativo, lançando uma verdadeira cruzada para denunciar o holocausto que ocorria no Congo.
Interessante é que Leopoldo 2º se apresentava à opinião pública européia como grande filantropo, responsável pela "missão civilizadora" da Europa no Ocidente. Dentre suas maquinações, Hochschild documenta as investidas sobre o presidente Chester A. Arthur e até o suborno a um senador americano.
São impagáveis os sutis paralelos que o autor estabelece entre o regime predatório, centralizado e autoritário de Leopoldo 2º e as táticas semelhantes de Mobuto Sese Seko, presidente Congo anos depois.
Após a leitura dessa obra, é difícil não comparar o filantropo rei belga com monstros da envergadura de Hitler ou Stálin. As semelhanças não param no número impressionante de vítimas, mas se desdobram no uso magistral que fizeram da propaganda e na habilidade para fazer causa comum com organizações e países cujos interesses seriam realmente arruinados por tal aliança.
O Estado Livre do Congo, nome de fantasia de sua empresa, era conduzido por verdadeiros sociopatas. Para ter uma dimensão dos abusos perpetrados, os oficiais brancos das forças públicas militares recebiam munição quando saíam para recrutar trabalhadores para as expedições de coleta do látex.
Para prevenir desperdícios dessa munição, eram obrigados a apresentar uma mão direita humana para cada bala disparada! Mas o assassinato não era a causa maior das mortes entre os congoleses. Havia o trabalho vigiado até a exaustão, a fome, as fugas.
Paralela a essa história de horrores, o livro de Hochschild conta o "outro lado", o das poucas pessoas que empreenderam o que hoje se poderia chamar de uma "campanha mundial por direitos humanos". Entre eles está o jornalista e líder negro americano George Washington Williams, que foi para o Congo e fundou um abrigo para ex-escravos.
Em 1890, publicou uma série de cartas, nas quais denunciava as atrocidades que testemunhou. As cartas tiveram ampla repercussão na Europa e nos Estados Unidos, apesar das tentativas de boicote da corte belga. Dez anos após a morte de Williams, seria a vez de Morel erguer sua voz, mobilizando nomes de peso da época.
A narrativa de Hochschild, densa como uma novela e rigorosamente documentada como um trabalho acadêmico, tem, entre outros méritos, a propriedade de mostrar as raízes do caos reinante até hoje na região do Congo.
Eu continuo a pensar com meus botões de que maneira um genocídio de tais dimensões conseguiu ser tão eficazmente apagado da história do século 20. Provavelmente por se tratar apenas de negros, africanos -como poderiam ter sido latino-americanos, ameríndios ou asiáticos-, não chega a provocar ferida na consciência do branco, europeu e civilizado. Não a ponto de deixar cicatrizes.


Jurandir Malerba é historiador e coordenador do Programa Associado de Pós-Graduação em História UEM/UEL.

Avaliação:     

Livro: O Fantasma do Rei Leopoldo Autor: Adam Hochschild Tradução: Beth Vieira Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 25 (363 págs.)

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