São Paulo, quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

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NINA HORTA

Histórias de um bufê

Todo mundo sabe disso: a hora mais preciosa de um restaurante é quando os empregados se reúnem para comer. Comecei a profissão dando assessoria para o restaurante de uma amiga, e minha sócia e eu nem pensávamos em hora do almoço, esperando o rush dos clientes, mas os funcionários estavam sempre lá, firmes, a postos para uma comidinha, e faziam a maior questão de que o tomate não estivesse maduro demais para a salada, gostavam mais duro, ou não comiam e ainda reclamavam bastante.
Quando batia 11h30, uma das moças se sentava na mesa comprida da cozinha, estivesse ou não a comida pronta, num banco alto, e ficava com as pernas balançando, como pernas de boneca, de sapato de verniz preto abotoado do lado. Era o maior mistério para nós.
Depois fui aprendendo, com o próprio bufê, que tem a hora do sagrado almoço. Na maioria dos dias, é aquilo mesmo: arroz, feijão, bife, frango ou peixe, salada, nada a ver absolutamente com comida de festa. E poderia haver, porque em comida complicada sempre se perde muita coisa, como pedaços mais finos do peixe, cabeças para sopa... Há, no entanto, uma delimitação não combinada, mas evidente. E as comidas que aparecem se repetem sempre, refletindo os costumes do pessoal que já trabalha lá há muito tempo. Tenho muita pena de não termos uma baiana -até que temos, a Nalva, mas ela cozinha comida árabe, expert em charutinhos, não faz outra coisa na vida.
Nas quintas, dia de feira, meu dia preferido, tem sardinha frita. Acho que já perdemos dezenas de clientes que entram para conversar sobre um casamento e sentem aquele cheiro que se infiltra por cada fio de cabelo, subindo dois andares pela escada íngreme.
Mandam para mim só o peixe como se fosse uma entrada, um "amuse gueule", e escolhem as maiores e mais gorduchas. Mas erram. Gosto das magras, esturricadas, que se come com os ossinhos sobrantes, mastigando tudo, regadas a limão.
Sueli, que está conosco há anos, sabe assar qualquer coisa. E, principalmente, um frango inteiro, que fica dourado, úmido, macio, um feito quase impossível com os frangos de hoje. Disfarça, não diz o segredo.
Coisas que não faço em casa e aparecem lá: músculo em pedaços, muito bem cozido em panela, vai-se juntando água aos poucos, até quase derreter, o molho fica bem grosso -é bom com polenta- e extremamente saboroso.
Há tempos tínhamos a Regina, que veio do Norte. Quando havia uma falta braba de ingredientes interessantes, ela fazia um caldo no qual juntava muita salsinha, coentro e farinha de mandioca. Quando começava a transformar-se num pirão, em frigideira, mas ainda bem mole, ela deixava cair dentro um ovo cru, que acabava de cozinhar junto, mas com a gema bem mole. Era um delicioso clássico da cozinha "povera".
Em matéria de ovo, tem outra coisa que me dão que é a simplicidade em pessoa. Uma cumbuca japonesa, com os hashis do lado e dentro um arroz qualquer e um ovo frito por cima, com uma polvilhada de cebolinha francesa. Pode vir junto um copinho de média, com caldo de feijão novo, bem grosso.
Quando temos estagiários, há sempre o perigo de uma novidade rondando o ar. Até hoje, o que mais nos deu prazer foi o mexicano com suas pimentas, tudo trazido da casa dele, mandado pela mãe, o chocolate sem açúcar para os moles (guisado de peru com chocolate), as dezenas de especiarias para rechear um pimentão...
Engraçado, cada qual faz a comida que estava acostumado na infância melhor do que os outros. Hoje em dia, nosso chef Marcelo é gaúcho, e acreditam que o pinhão dele é o melhor do mundo? Greg, o australiano, adorava beterraba, coisa que os clientes evitam. O cozinheiro chinês nos dava os maiores prazeres recheando um papel de arroz com restos de rabada, é possível?
Todo mundo sabe que, em cozinha, como em bufê, sempre há alguém querendo enfiar uma faca no outro, mas jamais na hora da bóia, aglutinadora e pacífica por excelência.
Às vezes, nas festas, a comida dos funcionários (ou da "criadagem", como diz a Andreinha, toda pernóstica, depois de ler um romance açucarado) é completamente diferente da de todo dia, geralmente um prato único. O inteligente dono da casa, às 18h30, se senta com o pessoal e come uma bela macarronada ao sugo. Na hora do carneiro ou da vitela, ele já está forrado e espera a fila com ar magnânimo e compreensivo.

@ - ninahort@uol.com.br


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