São Paulo, sábado, 19 de janeiro de 2008

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Livros - Crítica/"Correio do Tempo"

Mario Benedetti lança olhar derradeiro sobre seus escritos

Com prosa e poesia, autor avalia sua vida e produção em tom humilde e desolador

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Este livro do veterano escritor uruguaio Mario Benedetti compreende três seções narrativo-poéticas, entre as quais a que dá título à obra, além de um longo poema final em uma parte intitulada "Colofão".
Colofão, em sua etimologia, quer dizer fim de uma obra - o que combina não só com a idéia de remate de um livro, como também de reflexão sobre o lugar artístico e existencial de um autor que já pode ver sua produção como coisa acabada.
"Trago meus pés descalços para entrar no século/ essa comarca cifrada/ ainda ilusória", inicia ele o poema num tom de humildade que lembra o brasileiro Manuel Bandeira.
O poema contrapõe-se a outros, que servem de pórtico às divisões precedentes. "Correio do Tempo" constitui uma série de correspondências, em geral na forma tradicional de epístola, mas há também o êmulo de um recado em secretária eletrônica e um chamado "testamento hológrafo", em que o personagem enumera seu legado, muitas vezes não tangível ou não "legável".
A seção "As Estações", que se compõe de relatos transcorridos em cada uma das estações do ano, apresenta seres ilhados em um mundo hostil, responsável por seu estado de isolamento. No fundo, cada um compartilha apenas a certeza da solidão e a convicção de que a viagem, em determinado ponto, não pode ser feita senão por si mesmo.
O tom de resignada desolação percorre todo o volume, mas é talvez menos forte na seção que abre o livro, em que encontramos vários relatos mais anedóticos e que inicia com versos ligeiramente mais esperançosos: "são sinais de fumaça/ mas a fumaça/ leva consigo um coração de fogo".
Aqui temos a história de um menino, filho de pais separados, que enfim conhece a madrasta; de um preso que sonha que está preso; de uma dama da alta burguesia uruguaia que surpreende um ladrão em pleno assalto à sua casa; do preso político jogado no mar e que sobrevive para arrostar seu algoz.
Trata-se de histórias de confrontos, do protagonista com o outro, mas principalmente do personagem consigo próprio. O confronto com o outro permite que ele ou ela se reposicione ou reafirme sua posição -e há a circunstância de esse outro ser o próprio eu, como em "Não Há Sombra no Espelho", em que o narrador acerta contas com sua imagem especular.
Nesse sentido, o outro, visto pelo espelho do eu (ou seja, a lente da existência: "Minhas lembranças se deixam ver através de um vidro esmerilhado chamado memória"), em geral assume ares de fantasma. "Você é um fantasma", brada o militar contra o preso que tentou matar.
A coletânea trata também de ausências, pedaços de um passado perdido. É o caso do melhor conto do livro, "Ausências", em que um escritor se divide entre a memória da mulher amada e desaparecida e a figura de carne e osso, representada pela irmã dela.
O personagem cogita, em dado momento, retomar um projeto de romance de fantasmas.
Não de entidades metidas em lençóis e sim de seres que "não só desapareciam, mas que também comiam, tomavam banho, corriam, fornicavam, choravam e riam". Afinal, que são fantasmas senão essas presenças ausentes, ou essas ausências que nos assombram com sua presença?


CORREIO DO TEMPO
Autor:
Mario Benedetti
Tradução: Rubia Prates Goldoni
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 29,90 (168 págs.)
Avaliação: ótimo


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