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Livros - Crítica/"Correio do Tempo"
Mario Benedetti lança olhar derradeiro sobre seus escritos
Com prosa e poesia, autor avalia sua vida e produção em tom humilde e desolador
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Este livro do veterano escritor uruguaio Mario
Benedetti compreende
três seções narrativo-poéticas,
entre as quais a que dá título à
obra, além de um longo poema
final em uma parte intitulada
"Colofão".
Colofão, em sua etimologia,
quer dizer fim de uma obra - o
que combina não só com a idéia
de remate de um livro, como
também de reflexão sobre o lugar artístico e existencial de um
autor que já pode ver sua produção como coisa acabada.
"Trago meus pés descalços para
entrar no século/ essa comarca
cifrada/ ainda ilusória", inicia
ele o poema num tom de humildade que lembra o brasileiro
Manuel Bandeira.
O poema contrapõe-se a outros, que servem de pórtico às
divisões precedentes. "Correio
do Tempo" constitui uma série
de correspondências, em geral
na forma tradicional de epístola, mas há também o êmulo de
um recado em secretária eletrônica e um chamado "testamento hológrafo", em que o
personagem enumera seu legado, muitas vezes não tangível
ou não "legável".
A seção "As Estações", que se
compõe de relatos transcorridos em cada uma das estações
do ano, apresenta seres ilhados
em um mundo hostil, responsável por seu estado de isolamento. No fundo, cada um
compartilha apenas a certeza
da solidão e a convicção de que
a viagem, em determinado
ponto, não pode ser feita senão
por si mesmo.
O tom de resignada desolação percorre todo o volume,
mas é talvez menos forte na seção que abre o livro, em que encontramos vários relatos mais
anedóticos e que inicia com
versos ligeiramente mais esperançosos: "são sinais de fumaça/ mas a fumaça/ leva consigo
um coração de fogo".
Aqui temos a história de um
menino, filho de pais separados, que enfim conhece a madrasta; de um preso que sonha
que está preso; de uma dama da
alta burguesia uruguaia que
surpreende um ladrão em pleno assalto à sua casa; do preso
político jogado no mar e que sobrevive para arrostar seu algoz.
Trata-se de histórias de confrontos, do protagonista com o
outro, mas principalmente do
personagem consigo próprio. O
confronto com o outro permite
que ele ou ela se reposicione ou
reafirme sua posição -e há a
circunstância de esse outro ser
o próprio eu, como em "Não Há
Sombra no Espelho", em que o
narrador acerta contas com sua
imagem especular.
Nesse sentido, o outro, visto
pelo espelho do eu (ou seja, a
lente da existência: "Minhas
lembranças se deixam ver através de um vidro esmerilhado
chamado memória"), em geral
assume ares de fantasma. "Você é um fantasma", brada o militar contra o preso que tentou
matar.
A coletânea trata também de
ausências, pedaços de um passado perdido. É o caso do melhor conto do livro, "Ausências", em que um escritor se divide entre a memória da mulher amada e desaparecida e a
figura de carne e osso, representada pela irmã dela.
O personagem cogita, em dado momento, retomar um projeto de romance de fantasmas.
Não de entidades metidas em
lençóis e sim de seres que "não
só desapareciam, mas que também comiam, tomavam banho,
corriam, fornicavam, choravam e riam". Afinal, que são
fantasmas senão essas presenças ausentes, ou essas ausências que nos assombram com
sua presença?
CORREIO DO TEMPO
Autor: Mario Benedetti
Tradução: Rubia Prates Goldoni
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 29,90 (168 págs.)
Avaliação: ótimo
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