São Paulo, sábado, 19 de março de 2005

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LIVROS

LITERATURA

Após "Eles Eram Muito Cavalos", escritor lança dois romances

Para Ruffato, "busca pela felicidade apodrece tudo"

DA REPORTAGEM LOCAL

Leia a seguir trechos da entrevista com Luiz Ruffato, que lança a "saga" "Inferno Provisório". (CASSIANO ELEK MACHADO)

 

Folha - Paul Auster disse à Folha que a única resposta que consegue ter para os tempos sombrios que vivemos é o riso. Ele está terminando sua primeira comédia. Seus livros falam de tempos sombrios, mas por meio do trágico. Nosso sombrio não comporta o riso?
Luiz Ruffato -
Vivemos de fato tempos sombrios. Mas o sombrio do Primeiro Mundo é diferente do nosso. Nas sociedades americana ou européia as questões que se colocam não são de sobrevivência das pessoas, mas do Estado. Aqui, o buraco é mais embaixo. Não resolvemos questões básicas. Nem mesmo conseguimos formar um Estado. Não se pode dizer que o Brasil seja uma democracia, o que exigiria uma sociedade minimamente igualitária, nem que seja capitalista, já que mais da metade da população não tem acesso aos bens de consumo. Uma reflexão sobre como chegamos aonde estamos não pode ser feita na chave da comédia.

Folha - Mas a reflexão sobre o país tem de ser pessimista?
Ruffato -
Estou indo de certa forma na contracorrente da literatura contemporânea brasileira. Ela tende ou para o neo-naturalismo ou para uma literatura que chamo de "egótica", muito centrada no eu. Tento caminhar em outra seara, a da literatura realista, que no meu entender não é otimista nem pessimista. Ela estabelece uma reflexão sobre o real a partir do real.

Folha - Você usa como uma epígrafe um poema de Jorge de Lima que fala de naus que não chegam a seu destino por terem sua madeira podre já no tronco das árvores. O que faz com que os troncos da nossa sociedade nasçam podres?
Ruffato -
É do homem buscar a felicidade. Mas os parâmetros que o homem encontra hoje são tão pesados que essa busca pela felicidade esbarra, esbarra, e acaba apodrecendo tudo. Mina sua moral, sua ética, todo o resto.

Folha - Seu estilo fragmentário é ligado a esse apodrecimento?
Ruffato -
Minha questão é mais da teoria da literatura. A forma clássica do romance foi adequada para resolver problemas do início da Revolução Industrial. Depois, ela foi tendo que se adaptar aos novos tempos, até chegar a Joyce. O instrumento romance, com começo-meio-fim, não faz sentido diante da quantidade de informações de hoje, ficou obsoleto.
Minha opção pelo fragmentário foi uma provocação mesmo. Quando eu publiquei o "Eles Eram Muitos Cavalos", muitos críticos torceram o nariz e disseram "mas isto não é um romance". Também acho que não é. Mas o que é? Não é um livro de contos. Quero colocar em xeque estas estruturas. Não quero fazer uma reflexão só sobre a realidade política, mas também questionar por meio do conteúdo a forma.

Folha - A literatura é provisória como o inferno é provisório?
Ruffato -
Para mim, o inferno provisório é pior do que se fosse definitivo. O que é definitivo você pode pensar como definitivo. Já o provisório pode piorar. Meu inferno é "provisório" porque a estrutura do romance é provisória, os livros são provisórios, a própria idéia de Inferno, Céu e Purgatório é colocada em xeque.

Folha - E o Céu não entra na saga?
Ruffato -
Não. Se eu acreditasse nessas instâncias, talvez entrasse. Mas, como essas instâncias para mim perderam totalmente o sentido a partir do momento em que as noções de moral e ética foram relativizadas, acho que talvez alguém tenha ficado com o Céu, mas o Inferno é nosso.

Folha - Você se define como um realista. Sua "saga" terminará como as coisas estão hoje ou como você imagina que ficarão?
Ruffato -
Termina como elas estão hoje. Para mim tudo se resume a uma mera questão: eu não reconheço o outro, então ele não existe para mim, logo posso matá-lo, tanto faz. E veja que não estou falando só do marginal que mata no farol. Se um deputado não reconhece que exista o outro, vai roubar. Se o juiz que matou o segurança no supermercado não o reconhece como gente, pode matá-lo. Em uma sociedade em que o outro não existe, tudo é possível.

Folha - Quem são seus "outros" literários? Você dialoga com a "Geração 90", da qual tomou parte?
Ruffato -
"Geração 90" é um termo que mal ou bem vai compartimentar algo. Não tenho como negar que faça parte da Geração 90 geracionalmente, mas, se pensarmos em termos de corrente, não. Meu diálogo é com a tradição. Por mais contraditório que pareça falar em prosa experimental, que é o que tento fazer, e tradição, não vejo problemas nisso. Importante é notar que não estamos inventando nada. Se você pega a literatura feita nos blogs, hoje ela não avança nada em relação ao que se fazia nos anos 70.
Digo mais. Para mim, o grande romance é "Satyricon", de Petrônio. Tudo o que se faz hoje na literatura brasileira contemporânea como novidade já está lá. E é um livro do século 1. A mim incomoda ver uma prosa extremamente bem comportada hoje achando que está inaugurando algo. Eu não estou.


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