São Paulo, sábado, 19 de março de 2005

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RODAPÉ

Das epifanias e irrealidades cotidianas à doença como metáfora

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Hoje em dia, com a facilidade de publicação proporcionada pelos meios tecnológicos e pela abundância de editoras, a expressão "novos autores" corre o risco de logo se tornar caduca.
Quando começa a se falar de um autor recente, este já tem três ou quatro livros publicados, gerando no meio editorial uma nomenclatura capenga que distingue os "novos" dos "novos velhos" e dos "novíssimos"... É nesta última categoria que se destacam quatro lançamentos.
"O Fio de Cloto", de Mariella Augusta, é um livro de contos que investe numa linguagem solene (às vezes rebuscada em excesso) para conferir a vivências cotidianas uma atmosfera ritualística. Como indica o título (referência a uma das Moiras da mitologia grega que fiavam o destino), a autora explora o caráter alegórico das situações em que se encontram suas personagens, que no entanto permanecem no âmbito de uma existência cotidiana, mergulhadas no imobilismo de cena provinciana, com separações, mortes e ansiedades.
Em alguns momentos, sua prosa se aproxima do registro fantástico (com vestígios de regionalismo), recobrindo gestos e visões com simbolismos ocultos: "Mirei no espelho minha língua estendida para fora da boca. No final dela um grande túnel se abriu... pude ver então meus antepassados, suas secreções e excreções, sua mandíbula bem armada que até hoje não mudara de função, sua luta selvagem pela sobrevivência, cuja novidade para nós é a existência dourada da moeda".
Essa mesma atenção a situações descontínuas aparece em "Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e Eu", de Julián Fuks. Em suas narrativas, praticamente não há ação. Quando há, esta se resolve em anticlímax, deixando reverberar algum sentido que a cena ficcional cuidadosamente preparou.
Os contos "Relato de um Viajante" e "Relato de uma Senhora" são exemplares do trabalho de Fuks. Numa cabine de trem rumo a Veneza, estão uma velha com seu cachorrinho e um jovem mochileiro. Cada narrativa descreve esse encontro do ponto de vista de um deles, fazendo com que a presença enigmática do outro sirva de trampolim para o devaneio, para a alternância de paisagens interiores.
Seja no relato irônico do dia de um pedreiro, que começa com um vaticínio ameaçador e termina com a derrota de seu time de futebol ("Ulisses"), seja numa cena familiar em que uma criança aprende as tradições judaicas ("Noite de Páscoa"), o que importa nos contos de Fuks é a sensibilidade algo dolorosa com que a experiência vai sendo absorvida.
Bem diferente são os contos de "Subitamente: Agora", de Tiago Novaes. O título extraído de Cortázar e o prólogo "Instruções" (em que a epígrafe coincide com a primeira linha do texto propriamente dito) mostram de cara a propensão ao jogo textual, ao curto-circuito narrativo.
"Precisei sair desta cidade, ir ver o coliseu para descobrir que não precisava sair desta cidade para ver o coliseu", diz o narrador de "Círculo". Ou seja, a experiência serve apenas para reiterar a irrealidade da experiência -uma idéia que é "encarnada" pelas personagens insólitas de Novaes, que podem ser velhinhos "banguelas de bengala" vagando como autômatos ou uma turba de desempregados no topo do edifício Martinelli.
O mais surpreendente, porém, é o romance "Crônicos", de Daniela Abade. Seus 11 capítulos são biografias de personagens que se identificam por parentescos, amizades e, sobretudo, doenças que funcionam como metáforas corporais dos traumas e das obsessões inoculadas nos laços familiares. Assim, as alucinações do evangélico Odair transtornam a sexualidade de sua filha Marta, que terá infecção renal por causa da promiscuidade e será um modelo para o irmão homossexual João, que contrairá Aids após casar com Luciana, psiquiatra que se entope de psicofárcamos e cuida de Marcos, um doente precoce de Alzheimer, cuja filha Letícia é anoréxica etc. etc.
Essa estrutura em cadeia parece inspirada no poema "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade ("João que amava Teresa que amava Raimundo"...), mas a crueza com que Daniela Abade acumula fatos e afetos, sem "glamour" ou compaixão, faz de "Crônicos" um tratado ficcional sobre as neopatologias da modernidade ou sobre os vínculos sociais como doença.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

O Fio de Cloto
  
Autora: Mariella Augusta
Editora: Ícone
Quanto: R$ 17 (80 págs.)

Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e Eu
  
Autor: Julián Fuks
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 18 (68 págs.)

Subitamente: Agora
  
Autor: Tiago Novaes
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 17 (68 págs.)

Crônicos
   
Autora: Daniela Abade
Editora: Agir
Quanto: R$ 29,90 (132 págs.)


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