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RODAPÉ
Das epifanias e irrealidades cotidianas à doença como metáfora
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Hoje em dia, com a facilidade
de publicação proporcionada pelos meios tecnológicos e pela
abundância de editoras, a expressão "novos autores" corre o risco
de logo se tornar caduca.
Quando começa a se falar de um
autor recente, este já tem três ou
quatro livros publicados, gerando
no meio editorial uma nomenclatura capenga que distingue os "novos" dos "novos velhos" e dos "novíssimos"... É nesta última categoria que se destacam quatro lançamentos.
"O Fio de Cloto", de Mariella
Augusta, é um livro de contos que
investe numa linguagem solene
(às vezes rebuscada em excesso)
para conferir a vivências cotidianas uma atmosfera ritualística.
Como indica o título (referência a
uma das Moiras da mitologia grega que fiavam o destino), a autora
explora o caráter alegórico das situações em que se encontram suas
personagens, que no entanto permanecem no âmbito de uma existência cotidiana, mergulhadas no
imobilismo de cena provinciana,
com separações, mortes e ansiedades.
Em alguns momentos, sua prosa
se aproxima do registro fantástico
(com vestígios de regionalismo),
recobrindo gestos e visões com
simbolismos ocultos: "Mirei no espelho minha língua estendida para
fora da boca. No final dela um
grande túnel se abriu... pude ver
então meus antepassados, suas secreções e excreções, sua mandíbula bem armada que até hoje não
mudara de função, sua luta selvagem pela sobrevivência, cuja novidade para nós é a existência dourada da moeda".
Essa mesma atenção a situações
descontínuas aparece em "Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e Eu", de Julián Fuks. Em suas
narrativas, praticamente não há
ação. Quando há, esta se resolve
em anticlímax, deixando reverberar algum sentido que a cena ficcional cuidadosamente preparou.
Os contos "Relato de um Viajante" e "Relato de uma Senhora" são
exemplares do trabalho de Fuks.
Numa cabine de trem rumo a Veneza, estão uma velha com seu cachorrinho e um jovem mochileiro.
Cada narrativa descreve esse encontro do ponto de vista de um deles, fazendo com que a presença
enigmática do outro sirva de trampolim para o devaneio, para a alternância de paisagens interiores.
Seja no relato irônico do dia de
um pedreiro, que começa com um
vaticínio ameaçador e termina
com a derrota de seu time de futebol ("Ulisses"), seja numa cena familiar em que uma criança aprende as tradições judaicas ("Noite de
Páscoa"), o que importa nos contos de Fuks é a sensibilidade algo
dolorosa com que a experiência
vai sendo absorvida.
Bem diferente são os contos de
"Subitamente: Agora", de Tiago
Novaes. O título extraído de Cortázar e o prólogo "Instruções" (em
que a epígrafe coincide com a primeira linha do texto propriamente
dito) mostram de cara a propensão ao jogo textual, ao curto-circuito narrativo.
"Precisei sair desta cidade, ir ver
o coliseu para descobrir que não
precisava sair desta cidade para
ver o coliseu", diz o narrador de
"Círculo". Ou seja, a experiência
serve apenas para reiterar a irrealidade da experiência -uma idéia
que é "encarnada" pelas personagens insólitas de Novaes, que podem ser velhinhos "banguelas de
bengala" vagando como autômatos ou uma turba de desempregados no topo do edifício Martinelli.
O mais surpreendente, porém, é
o romance "Crônicos", de Daniela
Abade. Seus 11 capítulos são biografias de personagens que se
identificam por parentescos, amizades e, sobretudo, doenças que
funcionam como metáforas corporais dos traumas e das obsessões inoculadas nos laços familiares. Assim, as alucinações do evangélico Odair transtornam a sexualidade de sua filha Marta, que terá
infecção renal por causa da promiscuidade e será um modelo para o irmão homossexual João, que
contrairá Aids após casar com Luciana, psiquiatra que se entope de
psicofárcamos e cuida de Marcos,
um doente precoce de Alzheimer,
cuja filha Letícia é anoréxica etc.
etc.
Essa estrutura em cadeia parece
inspirada no poema "Quadrilha",
de Carlos Drummond de Andrade
("João que amava Teresa que amava Raimundo"...), mas a crueza
com que Daniela Abade acumula
fatos e afetos, sem "glamour" ou
compaixão, faz de "Crônicos" um
tratado ficcional sobre as neopatologias da modernidade ou sobre os
vínculos sociais como doença.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
O Fio de Cloto
Autora: Mariella Augusta
Editora: Ícone
Quanto: R$ 17 (80 págs.)
Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e Eu
Autor: Julián Fuks
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 18 (68 págs.)
Subitamente: Agora
Autor: Tiago Novaes
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 17 (68 págs.)
Crônicos
Autora: Daniela Abade
Editora: Agir
Quanto: R$ 29,90 (132 págs.)
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