São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Garotos em guerra


"Fantástico" exibe hoje documentário feito pelo rapper MV Bill e por Celso Athayde sobre jovens que trabalham para o tráfico de drogas em favelas brasileiras

LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

O "Fantástico" desta noite será tomado por 16 meninos que trabalham para o tráfico de drogas. O programa da Globo exibirá um documentário de 58 minutos sobre jovens operários do crime, marcado por cenas da intimidade de crianças com metralhadoras, granadas, maconha e cocaína.
"Falcão - Meninos do Tráfico" resulta de 217 horas de imagens captadas pelo rapper carioca MV Bill e seu empresário, Celso Athayde, ao longo de seis anos, em favelas de vários Estados.
Falcão é o nome dado aos que têm a função de vigiar a favela e avisar os traficantes quando a polícia ou qualquer outro "inimigo" se aproximar. "Falcão não dorme, ele só descansa", explica um deles.
Dos 16 personagens centrais, 15 foram assassinados e tiveram seus enterros registrados pelas câmeras. O sobrevivente chegou a ser empregado pelos produtores, mas voltou "à atividade" e, de acordo com as últimas informações obtidas por eles, está preso.
O objetivo agora é encontrá-lo para uma nova fase de gravações, já que, em 12 de outubro, Dia da Criança, "Falcão" será lançado nos cinemas em forma de longa-metragem. Também faz parte do projeto "Meninos do Tráfico" o lançamento de um livro, amanhã, com os bastidores das filmagens, e de um CD de MV Bill, em maio.
"Falcão" vai ao ar num momento em que se discute a ocupação dos morros cariocas pelo Exército e, por isso, em hora "oportuna", segundo Athayde. Apesar de ter sido registrada pelo documentário bem antes disso, a declaração de um garoto com arma em punho é reveladora: "Pode vir alemão, Aeronáutica, Exército, Marinha, o que for, que nós "vai" cair pra dentro. Nós "tem" que proteger os moradores, nosso morro, nossa favela". A cena está num trecho de três minutos ao qual a Folha teve acesso.
Segundo Athayde, a média de idade dos garotos retratados em "Falcão" é de 16 anos, 90% deles não têm pai e já têm filhos. "Isso quer dizer que, como os meninos já morreram, essas crianças também não terão pais. Estamos vivendo um genocídio."

Voz infantil
Os meninos estão à vontade diante da câmera de Bill, que já foi "do ramo" e diz ter sido "salvo" pelo hip hop, e de Athayde, também membro da comunidade. A eles, os garotos respondem sem medo aparente sobre propina à polícia, assassinatos, drogas, vida e morte. Com voz ainda infantil, pronunciam frases como "Nunca fico triste com nada, sempre tô "se" drogando", "Quando crescer, quero ser bandido" e "A realidade da vida é que o bagulho é doido".
O material é legendado e traz a tradução de gírias, como "arrego = propina". Algumas poucas cenas foram gravadas em câmera VHS, mas a maioria é digital. Os ambientes são escuros e, em razão do risco, nada foi feito com grandes equipes, como as da TV.
Em alguns casos, os próprios meninos registravam imagens ou colaboravam com a produção ao posicionar o microfone de lapela em suas metralhadoras.
O documentário não tem narração, e o "Fantástico" exibirá na seqüência os 58 minutos (metade da duração do programa, descontando os comerciais). Serão três blocos, cortados apenas por intervalos e não por outras reportagens. Há 33 anos no ar, o dominical jamais dedicara tanto espaço a uma produção independente.

Desentendimento
O documentário é o mesmo que, em 2003, foi objeto de desentendimento entre os produtores e a Globo (a nova versão tem apenas o acréscimo de mais três minutos). Bill e Athayde haviam autorizado a emissora a veicular o material, editado em parceria com a equipe do "Fantástico".
A exibição chegou a ser divulgada na TV no domingo anterior e em anúncios de jornais. Mas, às vésperas do programa, o rapper e seu empresário suspenderam a autorização, alegando "questões de foro íntimo". À época, especulou-se que teriam recebido ameaças de traficantes e que houve divergências em relação à edição. Em nota, a Globo falou em "enorme prejuízo financeiro e moral".
Três anos depois, Athayde dá a sua versão: "As pessoas começaram a imaginar uma série de coisas, mas não foi nada mais do que a emoção do Bill em relação às mortes dos jovens e a incerteza de que aquele era o momento exato".
Segundo Athayde, em 2003, "o documentário iria ao ar e nada mais iria acontecer". "A gente ia ficar famoso e só. Seria um gesto irresponsável. Hoje estamos preparados para argumentar e fazer o país refletir de maneira mais objetiva sobre o assunto."
Para ele, apesar do prejuízo financeiro mencionado pela Globo, "essa não é uma questão de negócio, mas de contribuição ao entendimento da realidade das favelas". Athayde afirma que a Cufa (Central Única das Favelas), entidade da qual Bill é líder, absorverá os lucros com o projeto "Falcão" (a exibição no "Fantástico" não será paga, segundo eles, mas o faturamento virá com a venda do livro, do CD e com o cinema).
Desta vez, a emissora se cercou de cuidados para não colocar novamente em jogo o nome de um de seus programas de maior audiência, com mais de 24 milhões de telespectadores no Brasil.
Apesar de Luiz Nascimento, diretor do "Fantástico", afirmar desconhecer a existência de um contrato, Athayde revelou à Folha que ele e MV Bill assinaram um compromisso de exibição.


Texto Anterior: Outro Canal - Daniel Castro: Seu Creysson ‘negocia’ candidatura em 2006
Próximo Texto: Comentário: Quem vamos convocar a seguir? Rambo?
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.