São Paulo, quarta-feira, 19 de março de 2008

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MARCELO COELHO

Como aproveitar melhor o trânsito

Num dia de pressa, cheguei a me barbear dentro do carro; levei a lâmina e a espuma

JÁ FAZ um bom tempo que guardo no carro um cortador de unhas: alguns minutos de congestionamento, pelo menos, prestam-se desse modo a uma tarefa útil.
Num dia de pressa, cheguei a me barbear dentro do carro. Levei a lâmina e a espuma de barba, e confesso que havia um bocado de exibicionismo nesse desespero. Mas não durou muito a sensação de ser esperto, que sempre perseguimos individualmente quando a irracionalidade é coletiva. Tinha esquecido de levar uma toalha, de modo que, no meio do processo, a direção do carro ficou totalmente ensaboada. Não recomendo a experiência.
De qualquer modo, enquanto as autoridades não se decidirem a implantar um rodízio mais amplo (única maneira, acho, de conseguir um desafogo visível a curto prazo no trânsito de São Paulo), é bom pensar em maneiras úteis de empregar o tempo dentro do carro.
Ouvir rádio não me tira a sensação de estar gastando horas à toa. Música é fundamental, mas precisa associar-se a um mínimo de conforto. Prefiro ligar nas estações de notícias, em tese mais proveitosas em meio a tanta paralisia.
Acontece que, a cada três vezes que sintonizo o noticiário, topo com duas conversas sobre futebol. Há sempre uma espécie de papinho besta entre os locutores, destinado a conferir certa informalidade à linguagem do rádio. Rompe-se com o estilo antigo de locução, gritado e rígido; mas surge, em troca, o vazio dos comentários, a flacidez da provocaçãozinha a respeito de alguma derrota sofrida pelo time do interlocutor... É a crônica bobeira brasileira, que pode ser bem sufocante.
E quando não é futebol, o rádio está dando notícias sobre o próprio trânsito. Logo isso acaba: basta dizer que está tudo parado, da Anhaia Melo à Chafic Maluf, da Bandeirantes à Giovanni Gronchi, e estamos conversados.
No meio de um congestionamento, não procuro "distração". Quero aproveitar o tempo, coisa bem diferente. O aprendizado de línguas pode ser tentado.
A revista "Speak Up", com CD e texto, é uma boa ajuda para quem já tem conhecimentos intermediários de inglês. Claro que nem sempre eu quero ouvir uma entrevista com Dustin Hoffman ou com um chofer de táxi londrino, mas para quem está há meia hora parado no mesmo quarteirão é sempre uma oportunidade de auto-aperfeiçoamento.
Ainda na área de línguas, há um equivalente da "Speak Up" para quem ainda guarde pretensões de entender alemão. É a revista "Schau ins Land", que pode ser encomendada no site www.champs-elysees.com. Eles também vendem revistas com CDs para quem aprende espanhol, francês e italiano. Claro que a mentalidade germânica impõe uma carga pesada aos interessados. Os detalhes industriais da produção dos lápis Faber Castell, por exemplo, entupiram de consoantes os meus ouvidos enquanto eu tentava me livrar da atravancada sintaxe do elevado Costa e Silva. Pelo menos, eu não podia reclamar só do trânsito: minha paciência era testada de outras formas.
Existe ainda no site o maravilhoso mundo dos audio-books em língua estrangeira. Eles oferecem a integral do "Estrangeiro", de Camus, lido pelo próprio autor. E, num produto especialmente designado para o trânsito paulistano, o texto francês completo de "Em Busca do Tempo Perdido", coisa de mais de cem discos.
Em português, dá para achar alguma coisa em audio-books. Não tenho muita vontade de ouvir contos de Clarice Lispector ou de Machado de Assis na 23 de Maio, mas tive curiosidade de conhecer melhor os novos contistas brasileiros. A atriz Leona Cavalli fez dois CDs com histórias de Marçal Aquino, Luiz Ruffato, Marcelino Freire, Nelson de Oliveira e muitos outros. Podem ser encontrados no site www.livrofalante.com.br.
No geral, essa literatura insiste em recriar, com certa artificialidade a meu ver, um mundo "bruto, sujo e malvado": motoboys assassinados bruscamente, pessoas felizes num depósito de lixo, crianças inocentes maltratadas pela cidade...
Programa de paulista, dirão os habitantes de metrópoles mais afortunadas. Mas é o que temos. Não pesquisei em outras áreas de consumo.
Quem sabe não exista um microondas para ligar no acendedor de cigarros do automóvel? Você chega em casa sem ter de se preocupar com o jantar. E talvez alguns sex-shops já tenham produtos para quem está parado no congestionamento. Seria a linha do "relaxe e goze"; bem que estamos precisando disso.


coelhofsp@uol.com.br

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