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MARCELO COELHO
Como aproveitar melhor o trânsito
Num dia de pressa, cheguei a me barbear dentro do carro; levei a lâmina e a espuma
JÁ FAZ um bom tempo que guardo no carro um cortador de
unhas: alguns minutos de congestionamento, pelo menos, prestam-se desse modo a uma tarefa
útil.
Num dia de pressa, cheguei a me
barbear dentro do carro. Levei a lâmina e a espuma de barba, e confesso que havia um bocado de exibicionismo nesse desespero.
Mas não durou muito a sensação
de ser esperto, que sempre perseguimos individualmente quando a
irracionalidade é coletiva. Tinha esquecido de levar uma toalha, de modo que, no meio do processo, a direção do carro ficou totalmente ensaboada. Não recomendo a experiência.
De qualquer modo, enquanto as
autoridades não se decidirem a implantar um rodízio mais amplo
(única maneira, acho, de conseguir
um desafogo visível a curto prazo no
trânsito de São Paulo), é bom pensar
em maneiras úteis de empregar o
tempo dentro do carro.
Ouvir rádio não me tira a sensação de estar gastando horas à toa.
Música é fundamental, mas precisa
associar-se a um mínimo de conforto. Prefiro ligar nas estações de notícias, em tese mais proveitosas em
meio a tanta paralisia.
Acontece que, a cada três vezes
que sintonizo o noticiário, topo com
duas conversas sobre futebol. Há
sempre uma espécie de papinho
besta entre os locutores, destinado a
conferir certa informalidade à linguagem do rádio. Rompe-se com o
estilo antigo de locução, gritado e rígido; mas surge, em troca, o vazio
dos comentários, a flacidez da provocaçãozinha a respeito de alguma
derrota sofrida pelo time do interlocutor... É a crônica bobeira brasileira, que pode ser bem sufocante.
E quando não é futebol, o rádio está dando notícias sobre o próprio
trânsito. Logo isso acaba: basta dizer
que está tudo parado, da Anhaia
Melo à Chafic Maluf, da Bandeirantes à Giovanni Gronchi, e estamos
conversados.
No meio de um congestionamento, não procuro "distração". Quero
aproveitar o tempo, coisa bem diferente. O aprendizado de línguas pode ser tentado.
A revista "Speak Up", com CD e
texto, é uma boa ajuda para quem já
tem conhecimentos intermediários
de inglês. Claro que nem sempre eu
quero ouvir uma entrevista com
Dustin Hoffman ou com um chofer
de táxi londrino, mas para quem está há meia hora parado no mesmo
quarteirão é sempre uma oportunidade de auto-aperfeiçoamento.
Ainda na área de línguas, há um
equivalente da "Speak Up" para
quem ainda guarde pretensões de
entender alemão. É a revista "Schau
ins Land", que pode ser encomendada no site www.champs-elysees.com. Eles também vendem
revistas com CDs para quem
aprende espanhol, francês e italiano.
Claro que a mentalidade germânica impõe uma carga pesada aos
interessados. Os detalhes industriais da produção dos lápis Faber
Castell, por exemplo, entupiram
de consoantes os meus ouvidos enquanto eu tentava me livrar da
atravancada sintaxe do elevado
Costa e Silva. Pelo menos, eu não
podia reclamar só do trânsito: minha paciência era testada de outras
formas.
Existe ainda no site o maravilhoso mundo dos audio-books em língua estrangeira. Eles oferecem a
integral do "Estrangeiro", de Camus, lido pelo próprio autor. E,
num produto especialmente designado para o trânsito paulistano, o
texto francês completo de "Em
Busca do Tempo Perdido", coisa de
mais de cem discos.
Em português, dá para achar alguma coisa em audio-books. Não
tenho muita vontade de ouvir contos de Clarice Lispector ou de Machado de Assis na 23 de Maio, mas
tive curiosidade de conhecer melhor os novos contistas brasileiros.
A atriz Leona Cavalli fez dois
CDs com histórias de Marçal Aquino, Luiz Ruffato, Marcelino Freire,
Nelson de Oliveira e muitos outros.
Podem ser encontrados no site
www.livrofalante.com.br.
No geral, essa literatura insiste
em recriar, com certa artificialidade a meu ver, um mundo "bruto,
sujo e malvado": motoboys assassinados bruscamente, pessoas felizes
num depósito de lixo, crianças inocentes maltratadas pela cidade...
Programa de paulista, dirão os habitantes de metrópoles mais afortunadas.
Mas é o que temos. Não pesquisei
em outras áreas de consumo.
Quem sabe não exista um microondas para ligar no acendedor de cigarros do automóvel? Você chega
em casa sem ter de se preocupar
com o jantar. E talvez alguns sex-shops já tenham produtos para
quem está parado no congestionamento. Seria a linha do "relaxe e
goze"; bem que estamos precisando disso.
coelhofsp@uol.com.br
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