São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 2006

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MARCELO COELHO

Aventuras de um coração

Todo mundo reclama do gosto que os jornalistas têm pelas más notícias. Às vezes me parece, com efeito, que a imprensa insiste demais em certas tragédias. Todo dia, abrindo a internet, vejo manchetes sobre novos mortos no Iraque. Já nem devia ser notícia -ficamos apenas sabendo que nada melhorou.
Há razões para essa preferência sinistra; a meu ver, o jornalismo só começa verdadeiramente se, em vez de fatos, registra problemas. Mesmo quando divulga soluções, descobertas científicas, boas iniciativas, cabe-lhe levantar quais os novos problemas que surgem a partir daí. Não por espírito de porco, mas em atenção aos interesses, sempre contrariáveis e complexos, envolvidos em toda atividade humana.
De qualquer modo, o fascínio por acidentes e tragédias não é exclusivo dos profissionais da imprensa. Um poeta contemporâneo de língua inglesa, Grey Gowrie, tem belos versos a esse respeito, que tento traduzir.
"Sem parar, os helicópteros/ -Barulhentos insetos de ficção científica- trançam e vagueiam/ em volta, com o jeito doido dos que se acham importantes./ Alguma coisa está acontecendo, alguém chegando/ Ou indo embora. A TV é só chuvisco,/ Os jornais ainda não chegaram,/ E agora, numa tarde de cúmulos-nimbos/ Inclinados pela luz do sol, carregados, luminescentes,/ Más notícias: um acidente de trem com nove mortos,/ Um hipermercado que se transformou em mortuário,/ O sorriso torcido e furtivo de um sobrevivente;/ Dizemos nossos que horrores e evitamos olhar/ Para os olhos um do outro, olhos encarando a tela,/ Cada íris um poço de expectativa."
É poesia forte o bastante, acho, pelo que tem a dizer a respeito de cada um de nós quando assiste ao noticiário. Mas Grey Gowrie escreveu esses versos a partir de uma situação muito particular, que lhes dá ainda mais intensidade e eloqüência.
Ele estava num quarto de hospital, e os helicópteros indo e voltando passavam bem perto de sua janela. E acidentes, no seu caso, eram boa notícia: o poeta estava na fila para um transplante de coração.
Publicado por uma pequena editora inglesa, "The Domino Man" conta essa experiência e deve seu título à circunstância especialíssima de seu autor ter recebido o coração de uma pessoa que já tinha, ela própria, se beneficiado de um transplante -de modo que o corpo de Gowrie se tornou o terceiro a ser habitado pelo mesmo coração. Caso único, podemos dizer, de um "triângulo cardíaco"...
Mas o Brasil não fica muito atrás. Por uma curiosa coincidência, a pequena editora mineira Scriptum publicou também os poemas de alguém que fez transplante de coração. Trata-se do crítico literário José Maria Cançado, que começa nova carreira como excelente poeta.
O título do livro não é muito do meu gosto: "O Transplante É um Baião-de-Dois". Mas a referência ao universo nordestino tem justificativas: o autor não descreve apenas a experiência do transplante, mas também a de ser tratado num hospital do SUS; e a passagem do coração de um corpo para outro se compara a uma longa migração. Migração mais interna do que essa, aliás, não seria possível.
A UTI do hospital público se transforma, assim, num "ITA do Norte", e os leitos são como redes numa balsa do São Francisco. As luzes sempre acesas da UTI evocam, para o autor, uma viagem fluvial: "... Se é bom o grande plasma da noite,/a circulação do rio, o faroleiro de plantão no monitor,/ daqui mesmo do leito levanto/ antigos interditos/ para com os embarcados há não sei quanto tempo/ no ITA, no ITA do Norte, navegar".
Circulação do sangue e do coração; leito do hospital e do rio: metáforas desse tipo "transmigram", por assim dizer, de um poema para outro, do mesmo modo que corações transplantados podem passar, presumivelmente, por pessoas de diferentes classes sociais. Em mais de um sentido, portanto, "esse coração, seu navegar de capitão pelicano/ de quem viu seu navio ir a pique/ faz desse puxado SUS da UTI/ um aberto anti-salão Titanic".
Já a hierarquia entre médicos, enfermeiros e ajudantes é perceptível, para quem está no leito do hospital, pelos tipos de sapatos, que a roupa branca não consegue disfarçar. Numa ironia implícita, o poeta é o único que está descalço, sem se mover -mas seu coração, claro, é o maior viajante.
Experiências "democráticas" desse tipo tendem, por certo, a desaparecer. Seja porque novos corações serão produzidos em massa, seja porque, com o predomínio das leis do mercado, o sistema de doações venha a ser suplantado pela compra pura e simples de órgãos humanos. Se o procedimento atual de doações ainda resiste -com as ineficiências e méritos que se conhecem- ao mundo da mercadoria, não chega a ser forçado dizer que, literalmente, o socialismo mal e mal se segura numa UTI.
Mas a vida desse coração, que se prolonga de corpo em corpo, sugere bem mais do que as considerações que acabo de fazer. Penso na terceira "Elegia de Duíno", de Rilke, na qual o poeta se dirige a um obscuro Netuno que reina sobre os rios do sangue. Rios que não dominamos e que, vindos dos ancestrais, irão se encontrar com outros, os que fluem no corpo da pessoa amada.
Pois desejar, mesmo fisicamente, é também despossuir-se, cumprir a própria vontade é entregar-se ao que existe de insondável dentro de nós.
Talvez seja também despossuir-se receber o coração de alguém; e, mais do que a experiência social do SUS e do transplante, José Maria Cançado traçou em seu livro o caminho dessa sensação mais profunda.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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