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MARCELO COELHO
Aventuras de um coração
Todo mundo reclama do
gosto que os jornalistas têm
pelas más notícias. Às vezes me
parece, com efeito, que a imprensa insiste demais em certas tragédias. Todo dia, abrindo a internet, vejo manchetes sobre novos
mortos no Iraque. Já nem devia
ser notícia -ficamos apenas sabendo que nada melhorou.
Há razões para essa preferência
sinistra; a meu ver, o jornalismo
só começa verdadeiramente se,
em vez de fatos, registra problemas. Mesmo quando divulga soluções, descobertas científicas,
boas iniciativas, cabe-lhe levantar quais os novos problemas que
surgem a partir daí. Não por espírito de porco, mas em atenção aos
interesses, sempre contrariáveis e
complexos, envolvidos em toda
atividade humana.
De qualquer modo, o fascínio
por acidentes e tragédias não é
exclusivo dos profissionais da imprensa. Um poeta contemporâneo de língua inglesa, Grey Gowrie, tem belos versos a esse respeito, que tento traduzir.
"Sem parar, os helicópteros/
-Barulhentos insetos de ficção
científica- trançam e vagueiam/
em volta, com o jeito doido dos
que se acham importantes./ Alguma coisa está acontecendo, alguém chegando/ Ou indo embora. A TV é só chuvisco,/ Os jornais
ainda não chegaram,/ E agora,
numa tarde de cúmulos-nimbos/
Inclinados pela luz do sol, carregados, luminescentes,/ Más notícias: um acidente de trem com
nove mortos,/ Um hipermercado
que se transformou em mortuário,/ O sorriso torcido e furtivo de
um sobrevivente;/ Dizemos nossos
que horrores e evitamos olhar/
Para os olhos um do outro, olhos
encarando a tela,/ Cada íris um
poço de expectativa."
É poesia forte o bastante, acho,
pelo que tem a dizer a respeito de
cada um de nós quando assiste ao
noticiário. Mas Grey Gowrie escreveu esses versos a partir de
uma situação muito particular,
que lhes dá ainda mais intensidade e eloqüência.
Ele estava num quarto de hospital, e os helicópteros indo e voltando passavam bem perto de sua
janela. E acidentes, no seu caso,
eram boa notícia: o poeta estava
na fila para um transplante de coração.
Publicado por uma pequena
editora inglesa, "The Domino
Man" conta essa experiência e deve seu título à circunstância especialíssima de seu autor ter recebido o coração de uma pessoa que
já tinha, ela própria, se beneficiado de um transplante -de modo
que o corpo de Gowrie se tornou o
terceiro a ser habitado pelo mesmo coração. Caso único, podemos
dizer, de um "triângulo cardíaco"...
Mas o Brasil não fica muito
atrás. Por uma curiosa coincidência, a pequena editora mineira
Scriptum publicou também os
poemas de alguém que fez transplante de coração. Trata-se do
crítico literário José Maria Cançado, que começa nova carreira
como excelente poeta.
O título do livro não é muito do
meu gosto: "O Transplante É um
Baião-de-Dois". Mas a referência
ao universo nordestino tem justificativas: o autor não descreve
apenas a experiência do transplante, mas também a de ser tratado num hospital do SUS; e a
passagem do coração de um corpo para outro se compara a uma
longa migração. Migração mais
interna do que essa, aliás, não seria possível.
A UTI do hospital público se
transforma, assim, num "ITA do
Norte", e os leitos são como redes
numa balsa do São Francisco. As
luzes sempre acesas da UTI evocam, para o autor, uma viagem
fluvial: "... Se é bom o grande plasma da noite,/a circulação do rio, o
faroleiro de plantão no monitor,/
daqui mesmo do leito levanto/
antigos interditos/ para com os
embarcados há não sei quanto
tempo/ no ITA, no ITA do Norte,
navegar".
Circulação do sangue e do coração; leito do hospital e do rio: metáforas desse tipo "transmigram",
por assim dizer, de um poema para outro, do mesmo modo que corações transplantados podem
passar, presumivelmente, por pessoas de diferentes classes sociais.
Em mais de um sentido, portanto,
"esse coração, seu navegar de capitão pelicano/ de quem viu seu
navio ir a pique/ faz desse puxado
SUS da UTI/ um aberto anti-salão Titanic".
Já a hierarquia entre médicos,
enfermeiros e ajudantes é perceptível, para quem está no leito do
hospital, pelos tipos de sapatos,
que a roupa branca não consegue
disfarçar. Numa ironia implícita,
o poeta é o único que está descalço, sem se mover -mas seu coração, claro, é o maior viajante.
Experiências "democráticas"
desse tipo tendem, por certo, a desaparecer. Seja porque novos corações serão produzidos em massa, seja porque, com o predomínio
das leis do mercado, o sistema de
doações venha a ser suplantado
pela compra pura e simples de órgãos humanos. Se o procedimento
atual de doações ainda resiste
-com as ineficiências e méritos
que se conhecem- ao mundo da
mercadoria, não chega a ser forçado dizer que, literalmente, o socialismo mal e mal se segura numa UTI.
Mas a vida desse coração, que se
prolonga de corpo em corpo, sugere bem mais do que as considerações que acabo de fazer. Penso na
terceira "Elegia de Duíno", de Rilke, na qual o poeta se dirige a um
obscuro Netuno que reina sobre
os rios do sangue. Rios que não
dominamos e que, vindos dos ancestrais, irão se encontrar com
outros, os que fluem no corpo da
pessoa amada.
Pois desejar, mesmo fisicamente, é também despossuir-se, cumprir a própria vontade é entregar-se ao que existe de insondável
dentro de nós.
Talvez seja também despossuir-se receber o coração de alguém; e,
mais do que a experiência social
do SUS e do transplante, José Maria Cançado traçou em seu livro o
caminho dessa sensação mais
profunda.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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