São Paulo, sábado, 19 de abril de 2008

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Livros - Crítica/"Flannery O'Connor - Contos Completos"

Contos de O'Connor lembram racismo e mundo em decadência

Edição inédita reúne todas as narrativas curtas da americana Flannery O'Connor

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Cerca de dez anos foi o tempo necessário para que Flannery O'Connor (1925-1964) deixasse sua marca no campo das letras. Da estréia com "Sangue Sábio" (1952) ao póstumo "Tudo que Sobe Deve Convergir" (1965), foram dois romances e quatro coletâneas de contos -e, a despeito da excelência dos primeiros, foi com os últimos que ela mais se destacou.
Com isso, pode-se avaliar a importância deste lançamento, que reúne, pela primeira vez no Brasil, a integralidade dos contos escritos pela autora. Mas, se Flannery tem lugar cativo no campo literário, isso não quer dizer que este seja destacado.
No Brasil, o panteão dos escritores sulistas americanos parece tomado por nomes como os de William Faulkner, Truman Capote ou mesmo de Carson McCullers.

Prosa simples e direta
E, se a afirmação contida no posfácio do escritor Cristovão Tezza, de que Flannery é "curiosamente mais moderna que Faulkner", não pode ser aceita sem discussão, deve-se conceder que a prosa mais simples e direta da escritora hoje angarie maior apelo junto ao público do que a do autor de "O Som e a Fúria".
Como Faulkner, seu cenário é o das pequenas e maiores cidades, e das propriedades rurais do sul dos Estados Unidos. Como ele, tematiza o fracasso e a frustração. Mas, ao contrário dele, não demonstra simpatia pelos derrotados.

Violência e riso
Ao falar das histórias de sua coletânea "Um Homem Bom É Difícil de Encontrar", cujos protagonistas por vezes encontram um fim violento, a contista afirmou que elas a faziam rolar de rir. E é provável que façam o mesmo com o leitor, até o espanto e o terror lhe roubarem o riso.
Não há como separar a mofa da tragédia em suas histórias, pois é essa combinação que lhes empresta sua qualidade única. O universo de que ela trata é o de um mundo decadente, com a ameaça de algo impreciso sempre pairando no ar, mas seus heróis são em geral ridículos, e o desenlace costuma ser desconcertante.

Racismo
Tome-se o conto "Revelação", em que uma fazendeira gorda e racista (o racismo velado ou ostensivo é um dos temas mais enfocados pela autora) leva, sem motivo aparente, uma livrada na testa. Atônita, ela ainda ouve sua agressora dizer: "Vai pro inferno, que é de lá que você veio, sua porca velha".
A ofensa leva posteriormente à "revelação" do título, suscitada pela visão de seus porcos no chiqueiro, em uma das epifanias mais estranhas da literatura. Esse acerto de contas dos personagens com seus "pecados" corresponde à convicção, igualmente angustiosa, de que o mundo deles está desaparecendo.
Mas, como esse mundo morituro é odioso, bem como são detestáveis as pessoas que o representam, quando elas enfim enfrentam sua sina não há no horizonte nenhum sinal de grandeza. O riso zombeteiro que ecoa ao longe é o de Deus ou de Flannery. E nós, leitores, nos sentimos compelidos a acompanhá-los, ainda que ligeiramente desconcertados.


CONTOS COMPLETOS
Autora: Flannery O'Connor
Tradução: Leonardo Fróes
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 79 (720 págs.)
Avaliação: ótimo



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