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GASTRONOMIA
Ruflando as asas, sacudindo as penas
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Sempre que sou entrevistada
em trabalhos de aspirantes a
cozinheiros e quetais, escuto a
pergunta recorrente: "Por que
não escreve outro livro? Por que
não escreve semanalmente? Sua
coluna é tão fácil...". Com um
pouco de raiva, disfarço, mas a
vontade é responder: "Não posso,
não tenho tempo, passo a vida a
rasgar papéis e arrumar livros em
suas respectivas pilhas". O que é a
pura verdade.
Ninguém acreditaria, no entanto, que, para dar aos leitores uma
simples coluna quinzenal, transformei minha casa, há muito
tempo, no cenário de "Os Pássaros", de Hitchcock. As aves são os
livros, que ocupam todos os espaços e desvãos e léguas de estantes
no térreo. Ali, da frente de batalha, elas (as aves) sobem as escadas, param no patamar, agrupam-se em "pães" e "Elizabeth
David", continuam subindo.
Na estante do quarto vazio de
meus filhos, enturmam-se em "dicionários", "antologias", "enciclopédias", "Londres", "comida
natural" e "grandes chefs".
Percebendo os armários de roupa desocupados, entraram sem
cerimônia e, na primeira porta,
brandas, coloridas, pousaram em
"Brasiliana", "a história da comida no Brasil", "o olhar do outro",
"cadernos de avós", minhas e dos
outros.
São, no entanto, aves traiçoeiras como todo mundo sabe... e sobravam duas portas. Atentas, ruflando as asas, sacudindo as penas, infiltraram-se por lá em pastas com excertos de revistas.
No quarto duplo de casal, aninharam-se numa estante de parede inteira, simpáticas, convivendo muito bem, gárrulas, apesar
das etnias diferentes. São indianas, provençais, árabes, francesas. É claro que alcançaram a cabeceira, desceram para a gaveta
e, vergonha das vergonhas, entraram debaixo da cama como revistas, aves de arribação, revistas
que passam e se vão.
Há o baú da espera, dos não-lidos, que piam baixinho, chamando, a mesinha dos atlas, dos mapas e dos caminhos fascinantes
trilhados pela comida.
Bem, esses são os pássaros já estabelecidos à vontade nos seus galhos. Na minha cabeça, no entanto, escuto de vez em vez uns trinados histéricos que só se resolvem
no one-click da Amazon ou na
corrida às livrarias.
E os ninhos vão se formando,
entrelaçando-se, por motivos que
aparecem sem ser chamados pelas pautas.
Jantávamos uma noite dessas
num restaurante japonês do bairro. No menu, lulas. Só que, naquele dia, estavam em falta. Só tinham o corpo da lula, comunicaram com certo desgosto, como se
houvéssemos pedido frango e só
nos pudessem oferecer os pés. Estranhamos, mas acontece que os
frequentadores de lá só comem as
perninhas...!!!
Na Liberdade, há um lugar onde se come um prato feito só dos
nervos do músculo transformados
em geléia saborosa. Eu estou nessa, num desejo grávido de comer
o que nunca me ofereceram antes,
pontas de orelhas, dentros de ossos, redes que seguram vísceras,
as essências puras. A pilha dos livros de comidas exóticas aumenta, cambaleia, soturna, sangrenta, à espera de ser transformada
em coluna.
Outro ninho que começou ontem e já alcançou proporções inéditas é o de "anais da domesticidade". Acreditem ou não, mulheres de todo o mundo estão querendo voltar para casa, dentes
rangendo, unhas coçando para
limpar o "lar". Querem de novo a
sensação de rainhas da casa, querem lavar roupa até que, alva, seja dependurada no varal com
cheiro de jasmim. Querem se deitar no chão de cerâmica escovado
e caçar a última barata. Precisam
de um dia para cozinhar arroz,
feijão, bolo de carne e pudim de
leite e servir com mesa posta e vaso com flor. Ardem por cerzir
meias de algodão com aquele ovo
de madeira.
O último livro doméstico que
saiu foi "Home Comforts, the
Science of Keeping House", de
Cheryl Mendelson, Scribner. Não
é uma Martha Stewart querendo
combinar o fundo dos ladrilhos
da piscina com o papel de carta.
Não. Quer trabalhar duro, dispensar a academia de ginástica, e
o livro já voa com suas próprias
asas, best seller de peso.
Nessa veia doméstica, imediatamente comecei a empilhar antigos manuais de noivas -quando
para minha surpresa- me saltaram aos olhos uns poemas de
Sylvia Plath, mulher dos anos 50,
leitora do "Ladies Home Journal", a revista mais belamente
doméstica já feita no mundo e
disfarçada como ela só. Pressionava as mulheres a crescer em beleza, sabedoria e artes domésticas, conciliar profissão e filhos.
Sylvia, perfeccionista, deu no que
deu, lindos poemas, fama eterna e
cabeça no forno. Entra para a nova pilha junto com o marido "Ted
Hughes", "diários" e "biografias".
Hei de destrinchar esse assunto
e volto logo. No momento, preciso
transferir uma aves para o guarda-malas antes que me comam os
olhos.
E-mail - ninahort@uol.com.br
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