São Paulo, sexta-feira, 19 de maio de 2000


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NOITE ILUSTRADA

Histórias de um underground brasileiro

ERIKA PALOMINO

ERNANI nasceu em 4 de maio. Foi engraxate, gari, menino de rua. Dormiu debaixo de um banco na praça da República. Adolescente, tentou ser cantor. Tinha a voz boa, mas ser homossexual lhe emperrou a carreira.
Tentou ainda ser bailarino, mas nada. Então quis mudar. Aos 20 e poucos, Ernani decidiu transformar seu corpo. Nascia Andréia de Maio.

NAQUELA época, anos 70, quanto mais litros de silicone tivesse um travesti mais poderoso ele era, mais respeito conquistava em seu meio. E Andréia se encheu de silicone. Fez a famosa viagem a Paris e, na volta, abriu com Valdemir Tenório de Albuquerque, o Val, a boate Val-Improviso, lendária casa de shows de travestis na Marquês de Itu. O Val-Improviso e o Val-Show, na Frederico Steidel, ajudaram a escrever a história do underground paulistano, com seus shows e sua frenética atividade, que às vezes chegava até o meio-dia. Cazuza foi um dos frequentadores e, não raro, a noite terminava com o cantor ao violão (o Val-Improviso entrou até em letra de música) ou com um prosaico churrasco.

ANDRÉIA se tornara uma espécie de mãe de todas. Poderosa, protegia e defendia os travestis das intempéries da vida noturna. Quando abriu sua própria boate, a Prohibidu's, na Amaral Gurgel, passou a abrigar então esse segmento que, muitas vezes, é marginal até mesmo dentro da comunidade gay (muitos clubes noturnos não deixam entrar os travestis).
Na Prohibidu's, Andréia misturou e aceitou todo mundo, em meio a garçons nus que fizeram o sucesso da casa e chamaram a atenção da cidade. Sem falar nos shows, claro, sempre no meio da madrugada (4h, 4h30), e o povo da noite saía então de seus trabalhos ou de outros clubes para terminar lá na Prohibidu's, já com dia claro, e o centro da cidade pulsando, avançando até 9h da manhã.

TUDO funcionava sob o olhar sempre vigilante e severo de Andréia de Maio. Carismática, sentada em sua cadeira na porta, ao lado do fiel companheiro, o pequinês Al Capone, ela sabia orquestrar aquilo ali como ninguém, com seus perigos e atrativos -o fascinante apelo da mondanité. Bandidos, mocinhas, drags, semidrags, clubbers, DJs, travas e boys; descolados, famosos, herdeiros milionários e artistas completando o casting.
UMA das noites mais absurdas da Prohibidu's foi a do aniversário de dez anos de carreira da famosa Gabriella Bionda, hoje cartomante, chamando-se por "Mãe Gabi" (quem a viu na última terça no "Muvuca"?).
Então em sua fase mais glamourosa, com um aplique louro tipo Madonna, Gabi recebia seus convidados, emocionada, ao lado da companheira Lu Moreira, a Lu, das Mercenárias, a banda de rock dos 80. Era dezembro de 97, e quem estava em São Paulo era a fotógrafa norte-americana Nan Goldin, justo quem?!, a rainha do demi-monde nova-iorquino. Levada por um grupo de amigos que se integrou com simpatia à festiva atmosfera daquela noite, Nan Goldin se sentiu em casa e se moveu com familiaridade no ambiente. Para falar a verdade, sequer foi notada pelas meninas ou pela homenageada. Nan Goldin fotografou Lu e Gabi, Andréia e os variadíssimos personagens que subiram a escadaria da boate naquela madrugada.
Andréia cuidava e dava amparo. Servia de sentinela, de guardiã daquele mundo perigoso e cheio de regras veladas. Mas também tinha lá seus problemas, claro. Envolveu-se, apaixonada, com um rapaz viciado em drogas que, depois de uma discussão, disparou nela seis tiros. Andréia (que não bebia nem usava drogas) foi atingida na mão, nos braços e nas pernas. Sofreu 13 cirurgias. Nunca mais foi a mesma. Ganhou um olhar tristonho e distante, quase ausente.

ALGUMAS coisas pouca gente sabia da vida de Andréia de Maio. Às vezes era vista sentada no banco da praça da República, onde costumava dormir quando criança. Ficava ali sozinha, com o amigo Al Capone, pensando.
Negociante de carros, ajudava também instituições de caridade (muitas doações foram feitas para a casa de travestis de Brenda Lee) e favelas.
Tinha insônia e costumava passar muitas madrugadas conversando com Carlos Alberto de Policastro, a Kaká di Polly, a quem considerava um irmão.
Andréia de Maio era ainda, segundo diz Kaká, "um pai-de-santo maravilhoso".
NA noite de Kaká no Rainha Vitória, bar/restaurante gay-friendly do largo do Arouche, na semana passada, Andréia foi homenageada num show/entrevista, por seus 50 anos, completados em 4 de maio último.
Agradeceu aos amigos e subiu ao palco para cantar "Paralelas" e "Manhã de Setembro". Sem avisar ninguém, Andréia fazia uma espécie de despedida da noite. Cansou. Depois de tantos anos de estrada, preparava-se para se mudar para o sítio que comprou e foi reformando em Ribeirão Pires. Disse que sentia mais prazer em ver as estrelas à noite, lá de seu sítio, e conversar com os caseiros, que em "ouvir bobagens e ver as pessoas se destruindo em troca de um sonho que nem se sabe onde vai dar".

ASSIM, hoje, nesta sexta-feira, quando o povo baixasse na Prohibidu's ou ligasse para sua casa na Vila Mariana, Andréia não estaria mais aqui.
Mas antes disso, também sem avisar ninguém, arrumou alguém para cuidar de Al Capone (que já está velhinho, com 17 anos) e se internou para tirar um pouco do silicone de seu corpo. Foi operada então na terça-feira. Voltou da anestesia e tomou sopa. Mas passou mal durante a madrugada e, pela manhã, entrou em coma, praticamente sem assistência, na tal "clínica". Andréia de Maio morreu na mesma terça-feira. Foi velada durante a madrugada de quarta para quinta no Araçá e foi enterrada ontem ao meio-dia no cemitério da Consolação.

UMA história ímpar e, ao mesmo tempo, uma história comum no Brasil, Andréia de Maio, que nasceu e morreu em maio, já é um mito na vida de São Paulo.


E-mail: palomino@uol.com.br



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