São Paulo, quinta-feira, 19 de maio de 2005

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58º FESTIVAL DE CANNES

Em entrevista à Folha, o cineasta dinamarquês comenta seus medos, a eleição de Bento 16 e sua nova produção, "Manderlay"

Fóbico, Lars von Trier pede papa liberal

ALCINO LEITE NETO
ENVIADO ESPECIAL A CANNES

Por causa de suas fobias, entre elas a claustrofobia, o dinamarquês Lars von Trier nunca viaja de avião e, assim, nunca foi aos EUA. O que não o impediu de fazer uma trilogia sobre o país, com a pretensão de desmontar os mitos históricos americanos. Em "Dogville", afrontou o puritanismo, o sistema religioso que funda o país. Em "Manderlay", que concorre à Palma de Ouro, aborda a escravidão na América. O próximo longa se chamará "Washington".
Von Trier veio para a França num trailer. Está hospedado num dos hotéis mais caros da Europa, o Hotel du Cap (cerca de 4.000 a diária, ou R$ 12,5 mil), em Antibes, a meia hora de Cannes.
Numa tenda montada à beira-mar, se encontrou com a Folha e seis jornalistas de diferentes países para falar sobre "Manderlay". Para ele, o filme não é só sobre o passado americano. "Penso que será compreendido por muita gente, de países que tiveram ou não a escravatura, porque as limitações econômicas ainda existem e atingem todo o mundo."
Católico, afirmou que espera que Bento 16 seja mais liberal que João Paulo 2º. "O velho papa deveria ter liberado a camisinha", disse na entrevista, em que falou menos do filme e mais de si mesmo, como num psicodrama.

 

Pergunta - "Manderlay" tem uma abordagem muito precisa da escravidão e das contradições que a cercam. O sr. acha que seu filme tem lições a dar ao Brasil, que viveu um longo período de escravatura?
Lars von Trier -
Não sei nada sobre o Brasil, apenas que tiveram escravos -está nos livros de história. Mas penso que o filme será compreendido por muita gente, de países que tiveram ou não escravatura, porque as limitações econômicas ainda existem e atingem todo o mundo. A questão não é achar que, por não ter havido escravos num país, meu filme não tenha nada a dizer às pessoas desse lugar. Talvez exista hoje uma escravidão sob uma outra forma, e o meu filme também é sobre isso. Mas devo dizer que, pessoalmente, não passo por nenhuma limitação econômica e estou feliz que seja assim. Não quero dizer que sou muito rico, mas tenho minha casa, posso criar meus filhos. O que tenho é uma limitação psicológica dentro de mim, por ser fóbico. Mas não quero falar sobre isso. Acreditem, não é uma coisa legal de sentir.

Pergunta - A sua fobia nasce nos 60% da sua mente que são norte-americanos, para usar a metáfora que utilizou na entrevista do filme?
Von Trier -
[Risos] O meu lado 60% americano me assusta. Mas tenho a idéia romântica de que os demônios reais vêm da Europa.

Pergunta - O que provoca o sr.?
Von Trier -
Acreditem ou não, mas posso ser provocado. Vocês me provocam [risos]. Vocês têm de entender que não faço filmes para dar entrevistas. Não é que tenha medo, mas é uma situação difícil, me sinto incomodado. Fico preocupado com o que digo.

Pergunta - O sr. prefere ser amado a ser questionado?
Von Trier -
Não é questão de vocês gostarem ou não de mim nessa situação. O que me incomoda é sentar aqui, na frente, e ser obrigado a falar sem ter vontade, pois eu apenas queria fazer o filme. Eu tento mentir o mínimo possível, mesmo numa situação como esta, porque eu sou muito estúpido para mentir. Por isso é tão difícil.

Pergunta - Entendo que o sr. é um artista sério e que esta situação possa ser difícil. Mas, ao mesmo tempo, está num dos mais caros hotéis na Europa, vem para Cannes, é aplaudido... Há algo que diz ao sr. que esse é um bom jogo e vale a pena continuar jogando?
Von Trier -
Provavelmente. Mas isso não é o mais importante. Não sou mais feliz que o jardineiro deste hotel. Falei com ele algumas vezes e ele é feliz. Amo minha mulher e meus filhos, mas algo dentro de mim faz minha vida ruim às vezes. Acho que todos temos isso, mesmo o jardineiro. Mas às vezes gostaria de ser como ele.

Pergunta - É verdade que sua equipe teve dificuldades para convencer americanos a participar de "Manderlay" e, por isso, foi buscá-los no Reino Unido e no Caribe?
Von Trier -
Sim. Os americanos gostavam do roteiro, achavam que o filme era importante e deveria ser feito, mas nos respondiam que o fizéssemos sem eles. Creio que ficaram inseguros com o fato de o filme não ter uma mensagem definitiva. É um filme aberto. Não quero deixar as coisas muito claras ali. Se me pedirem para assinar um manifesto anti-racista, eu assino. Mas o filme é outra coisa.

Pergunta - Qual a importância de Brecht para seu cinema?
Von Trier -
Não muito grande, eu acho, trabalho mais emocionalmente. Eu li Brecht na universidade e gosto do humor de suas peças. Isso é algo que me atrai e que busco realizar nos meus filmes.

Pergunta - Seus filmes não são dialéticos, no sentido brechtiano?
Von Trier -
Claro que são, mas não são marxistas. Ou será que são? Fiz pesquisas para "Manderlay", mas não é um filme científico. Não mostro os problemas e dou as soluções. O que um artista pode fazer é ser ele mesmo. Se tiver algo de interessante a dizer, está bom. Mas me acho um pouco estúpido para discutir isso.

Pergunta - Como católico, o que achou da eleição do papa?
Von Trier -
Sou um pobre católico [ri], mas politicamente gostaria que tivessem escolhido alguém mais novo. Não sei nada sobre o novo papa, mas penso que o velho papa deveria ter permitido que se usasse camisinha. Espero que Bento 16 seja mais liberal. Em todo caso, não vou para o inferno.

Pergunta - Por que não?
Von Trier -
Estou certo de que não. Por vários motivos. Você vai para o inferno por se masturbar?

Pergunta - Como será "Washington", o próximo filme da trilogia?
Von Trier -
Não tenho idéia.


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