|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
58º FESTIVAL DE CANNES
Em entrevista à Folha, o cineasta dinamarquês comenta seus medos, a eleição de Bento 16 e sua nova produção, "Manderlay"
Fóbico, Lars von Trier pede papa liberal
ALCINO LEITE NETO
ENVIADO ESPECIAL A CANNES
Por causa de suas fobias, entre
elas a claustrofobia, o dinamarquês Lars von Trier nunca viaja de
avião e, assim, nunca foi aos EUA.
O que não o impediu de fazer uma
trilogia sobre o país, com a pretensão de desmontar os mitos históricos americanos. Em "Dogville", afrontou o puritanismo, o
sistema religioso que funda o país.
Em "Manderlay", que concorre à
Palma de Ouro, aborda a escravidão na América. O próximo longa
se chamará "Washington".
Von Trier veio para a França
num trailer. Está hospedado num
dos hotéis mais caros da Europa,
o Hotel du Cap (cerca de 4.000 a
diária, ou R$ 12,5 mil), em Antibes, a meia hora de Cannes.
Numa tenda montada à beira-mar, se encontrou com a Folha e
seis jornalistas de diferentes países para falar sobre "Manderlay".
Para ele, o filme não é só sobre o
passado americano. "Penso que
será compreendido por muita
gente, de países que tiveram ou
não a escravatura, porque as limitações econômicas ainda existem
e atingem todo o mundo."
Católico, afirmou que espera
que Bento 16 seja mais liberal que
João Paulo 2º. "O velho papa deveria ter liberado a camisinha",
disse na entrevista, em que falou
menos do filme e mais de si mesmo, como num psicodrama.
Pergunta - "Manderlay" tem uma
abordagem muito precisa da escravidão e das contradições que a cercam. O sr. acha que seu filme tem lições a dar ao Brasil, que viveu um
longo período de escravatura?
Lars von Trier - Não sei nada sobre o Brasil, apenas que tiveram
escravos -está nos livros de história. Mas penso que o filme será
compreendido por muita gente,
de países que tiveram ou não escravatura, porque as limitações
econômicas ainda existem e atingem todo o mundo. A questão
não é achar que, por não ter havido escravos num país, meu filme
não tenha nada a dizer às pessoas
desse lugar. Talvez exista hoje
uma escravidão sob uma outra
forma, e o meu filme também é
sobre isso. Mas devo dizer que,
pessoalmente, não passo por nenhuma limitação econômica e estou feliz que seja assim. Não quero dizer que sou muito rico, mas
tenho minha casa, posso criar
meus filhos. O que tenho é uma limitação psicológica dentro de
mim, por ser fóbico. Mas não
quero falar sobre isso. Acreditem,
não é uma coisa legal de sentir.
Pergunta - A sua fobia nasce nos
60% da sua mente que são norte-americanos, para usar a metáfora
que utilizou na entrevista do filme?
Von Trier - [Risos] O meu lado
60% americano me assusta. Mas
tenho a idéia romântica de que os
demônios reais vêm da Europa.
Pergunta - O que provoca o sr.?
Von Trier - Acreditem ou não,
mas posso ser provocado. Vocês
me provocam [risos]. Vocês têm
de entender que não faço filmes
para dar entrevistas. Não é que tenha medo, mas é uma situação difícil, me sinto incomodado. Fico
preocupado com o que digo.
Pergunta - O sr. prefere ser amado a ser questionado?
Von Trier - Não é questão de vocês gostarem ou não de mim nessa situação. O que me incomoda é
sentar aqui, na frente, e ser obrigado a falar sem ter vontade, pois
eu apenas queria fazer o filme. Eu
tento mentir o mínimo possível,
mesmo numa situação como esta,
porque eu sou muito estúpido para mentir. Por isso é tão difícil.
Pergunta - Entendo que o sr. é um
artista sério e que esta situação
possa ser difícil. Mas, ao mesmo
tempo, está num dos mais caros
hotéis na Europa, vem para Cannes, é aplaudido... Há algo que diz
ao sr. que esse é um bom jogo e vale a pena continuar jogando?
Von Trier - Provavelmente. Mas
isso não é o mais importante. Não
sou mais feliz que o jardineiro
deste hotel. Falei com ele algumas
vezes e ele é feliz. Amo minha mulher e meus filhos, mas algo dentro de mim faz minha vida ruim
às vezes. Acho que todos temos isso, mesmo o jardineiro. Mas às
vezes gostaria de ser como ele.
Pergunta - É verdade que sua
equipe teve dificuldades para convencer americanos a participar de
"Manderlay" e, por isso, foi buscá-los no Reino Unido e no Caribe?
Von Trier - Sim. Os americanos
gostavam do roteiro, achavam
que o filme era importante e deveria ser feito, mas nos respondiam
que o fizéssemos sem eles. Creio
que ficaram inseguros com o fato
de o filme não ter uma mensagem
definitiva. É um filme aberto. Não
quero deixar as coisas muito claras ali. Se me pedirem para assinar um manifesto anti-racista, eu
assino. Mas o filme é outra coisa.
Pergunta - Qual a importância de
Brecht para seu cinema?
Von Trier - Não muito grande, eu
acho, trabalho mais emocionalmente. Eu li Brecht na universidade e gosto do humor de suas peças. Isso é algo que me atrai e que
busco realizar nos meus filmes.
Pergunta - Seus filmes não são
dialéticos, no sentido brechtiano?
Von Trier - Claro que são, mas
não são marxistas. Ou será que
são? Fiz pesquisas para "Manderlay", mas não é um filme científico. Não mostro os problemas e
dou as soluções. O que um artista
pode fazer é ser ele mesmo. Se tiver algo de interessante a dizer,
está bom. Mas me acho um pouco
estúpido para discutir isso.
Pergunta - Como católico, o que
achou da eleição do papa?
Von Trier - Sou um pobre católico [ri], mas politicamente gostaria que tivessem escolhido alguém mais novo. Não sei nada sobre o novo papa, mas penso que o
velho papa deveria ter permitido
que se usasse camisinha. Espero
que Bento 16 seja mais liberal. Em
todo caso, não vou para o inferno.
Pergunta - Por que não?
Von Trier - Estou certo de que
não. Por vários motivos. Você vai
para o inferno por se masturbar?
Pergunta - Como será "Washington", o próximo filme da trilogia?
Von Trier - Não tenho idéia.
Texto Anterior: Personalidade 2: "Hello!" ganha caso relativo a Michael Douglas Próximo Texto: Frase Índice
|