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ANTONIO CICERO
A poesia é um segredo dos deuses?
Conhecendo a poesia, conhecemos uma maravilha que nenhum deus é capaz de conhecer
NUMA MESA-REDONDA de que
participei recentemente, no
encontro de escritores que
tem lugar anualmente em Póvoa de
Varzim, no norte de Portugal, o tema proposto para discussão foi: "A
poesia é um segredo dos deuses".
A propósito desse assunto, lembro
que João Cabral dividia os poetas
entre aqueles que tinham a poesia
espontaneamente, como presente
dos deuses, e aqueles -entre os
quais ele mesmo se situava- que a
obtinham após uma elaboração demorada, como conquista humana.
Ora, o tema da nossa mesa havia
sido proposto tanto para deixar à
vontade os poetas do primeiro grupo, isto é, os que acreditam na inspiração, quanto para provocar os do
segundo, isto é, os que não acreditam nela, de maneira que uns e outros se sentissem livres para expor
as suas poéticas divergentes.
Quanto a mim, não sinto que caiba
inteiramente em nenhum desses
dois grupos. Certamente considero
uma tolice pensar que a poesia seja
pura inspiração, pura dádiva dos
deuses; mas penso que há também
um quê daquela violência que os
gregos chamavam de "húbris", um
quê de insolência e arrogância na tese de que ela seja o resultado plenamente consciente e calculado do
trabalho.
A inspiração é o nome que damos
à contribuição indispensável do incalculável, do inconsciente, do acaso
e mesmo do equívoco à elaboração
do poema. Nenhum grande poeta
-nem mesmo João Cabral- jamais
pôde deixar de se fazer disponível e
receptível à irrupção dessas gratas e
imprevisíveis contribuições. "A arte
ama o acaso", diz Aristóteles, com
razão, "e o acaso, a arte". E o acaso e a
arte se encontram inextricavelmente entrelaçados na feitura do poema.
A tal ponto isso me parece verdade que não acho muita graça nas
boutades segundo as quais a poesia
seria 10% inspiração e 90% transpiração. Por quê? Porque elas sugerem a idéia comum e equivocada de
que o poeta tem, em primeiro lugar,
a inspiração, para depois ter o trabalho de desenvolvê-la e poli-la.
Ora, penso que é justamente durante o trabalho, na busca de alternativas ao imediato e fácil, ou na
tentativa de solucionar problemas
criados pelo desenvolvimento do
próprio poema, que a inspiração é
mais solicitada e bem-vinda; e, por
sua vez, a incorporação do impremeditado ao poema exige sempre
uma nova elaboração, de modo que
jamais se pode saber ao certo quanto
do resultado final se deve à inspiração ou ao trabalho.
O fato é que a mim são muito simpáticos os deuses que representam
as fontes de inspiração dos poetas,
como Apolo e as Musas. A estas,
aliás, já dediquei, em gratidão, pelo
menos um dos poemas que fiz. Entretanto, dado que também reconheço o papel indispensável do trabalho consciente na produção dos
poemas, não acho correto dizer que
a poesia seja um presente delas.
E, por duas razões, parece-me
claro que a poesia não pode ser um
segredo dos deuses. A primeira é
que a poesia é um fenômeno humano, demasiadamente humano. Longe de consistir numa atividade puramente racional, ela lida com o que é
particular, finito, humano. Ela usa
palavras particulares de línguas particulares, finitas, humanas. Ela lida
com a morte, a paixão, a perda, a
ilusão, a esperança, o medo, a imaginação, o cômico, o trágico etc., que
são realidades particulares, finitas,
humanas.
E a própria beleza da poesia é encarnada, sensual, particular, finita,
humana. Os deuses -imortais,
olímpicos, abençoados, oniscientes- não entenderiam tais coisas ou
as desprezariam, pois se encontram
muito acima delas. Conhecendo a
poesia, o ser humano conhece uma
maravilha que nenhum deus é capaz
de conhecer.
Ademais, a poesia não pode ser
um segredo, nem dos deuses, nem
dos homens, nem mesmo do ponto
de vista lógico. Por quê? Porque um
segredo é algo que, em princípio, poderia ser revelado. Por exemplo, a
fórmula de uma bomba ou a receita
de um doce podem ser segredos,
porque podem, em princípio, ser revelados. Se alguém diz que sabe um
segredo, mas que não seria capaz de
revelá-lo de modo nenhum, essa
pessoa está mentindo.
Um segredo tem que ser conhecido ao menos por uma pessoa ou um
deus. Ora, é possível fazer um bom
poema, mas não é possível, nem em
princípio, saber como deve ser um
poema, para ser bom. Essa é, na verdade, uma das poucas certezas que
um poeta pode ter: é absolutamente
inconcebível que haja fórmulas, receitas ou segredos -divinos ou humanos- para a feitura de um bom
poema. Logo, a poesia não é um segredo dos deuses.
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