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CONTARDO CALLIGARIS
A mídia e as memórias de Hillary Clinton
Na segunda-feira da semana
passada, chegou às livrarias
"Living History" ("história viva"
ou "vivendo a história"), de Hillary Rodham Clinton, ex-primeira-dama dos EUA e senadora pelo Estado de Nova York. No primeiro dia, venderam-se 200 mil
exemplares.
Não houve distribuição prévia
do livro à imprensa. Apesar disso,
no Brasil, alguém escreveu, no
meio da semana, que a única coisa interessante nas memórias era
a historieta de Bill Clinton e Monica Lewinsky. Felicitações: em
três dias, ele conseguiu receber o
livro e ler as 500 páginas.
Os profissionais da mídia americana, em sua maioria, não fizeram melhor. No índice analítico,
procuraram "Monica Lewinsky"
e "Whitewater" (o nome do investimento imobiliário no qual os
Clintons perderam suas economias sem cometer ilegalidade nenhuma). Os comentaristas, ao
que parece, apostaram que o povo
(sempre burro, não é?) gostaria de
histórias escabrosas.
Se pensaram assim, erraram.
Para ler nos retalhos de tempo,
carreguei o livro por todo canto
de Nova York. Em seis dias, fui interpelado por dezenas de desconhecidos que planejavam ler o livro ou já estavam lendo: porteiros, caixas de farmácia e de supermercado, garçons, halterofilistas, corredores de esteira, seguranças, bombeiros. Só um deles
mencionou o caso Lewinsky, para
notar que não entendia que ainda se falasse desse episódio insignificante. Todos perguntavam como foi a juventude de Hillary e,
sobretudo, quais eram suas aspirações políticas de hoje: concorreria à Presidência? E seu antigo
projeto de assistência médica gratuita?
O dito povo, ao menos em parte,
parece estar disposto a acreditar
que existam vidas animadas pela
paixão cívica do serviço público.
Fora o preconceito segundo o
qual o povo gostaria de roupa suja, por que diabo a mídia, em
massa, soube apenas associar o
nome de Hillary Clinton à escapadela Lewinsky ou a uma pequena maracutaia imobiliária
desmentida pela Justiça? Por que
comentaram o livro como se a vida de Hillary não fosse uma história política, mas um conto de infidelidades conjugais (do marido) e
de interesses escusos?
Será que a urgência e a preguiça
de ler produziram o espírito de
porco dos comentaristas? Suspeito que haja uma outra razão, como se diz, mais embaixo.
O tratamento reservado ao livro
de Hillary é exemplar de uma atitude que conhecemos bem: quando os outros são melhores que
nós, tentamos rebaixá-los, por
vergonha. Imaginando neles nossos próprios defeitos, afirmamos
nossa inocência. Por exemplo, é
providencial que muitos políticos
sejam corruptos, pois isso nos permite afirmar que todos são. Justificamos, assim, a mediocridade
de nossos engajamentos políticos
e sociais.
Ora, no livro de Hillary Clinton,
há três eixos éticos.
O primeiro orienta seu casamento com Bill Clinton. "Perguntam-me com frequência por que
Bill e eu ficamos juntos.(...) O que
dizer para explicar um amor que
persistiu por décadas e cresceu
nas experiências de criar uma filha, de enterrar nossos pais e de
nos ocupar de nossos familiares,
compartilhando as amizades de
uma vida inteira, uma fé comum
e uma dedicação persistente ao
nosso país? Só sei que ninguém
me entende melhor e ninguém me
faz rir como Bill. (...) Bill Clinton e
eu começamos uma conversa na
primavera de 1971; 30 anos depois
ainda estamos conversando."
O segundo concerne à vida pública. Hillary nasceu na pequena
burguesia, conquistou o acesso às
melhores universidades, tornou-se advogada e, em vez de enriquecer tranquila, escolheu o serviço
público. Sua vida é uma série de
engajamentos políticos: começou
aos 12 anos e continuou até o Senado, passando pelo ativismo nas
campanhas de Barry Goldwater
(na adolescência, ela era republicana como seu pai), de Jimmy
Carter e de Clinton. Sem contar a
militância feminista e o trabalho
incessante em defesa das crianças
menos favorecidas.
Terceiro eixo: nesse percurso,
Hillary manteve a disponibilidade ao diálogo, ou seja, a capacidade de reconhecer que o adversário político pode discordar
quanto aos meios e às prioridades, mas não por isso ele é necessariamente um inimigo da comunidade.
Em suma, a moral de "Living
History" diz: vale a pena lutar para as relações que importam numa vida, vale a pena dedicar-se
ao bem comum e vale a pena reconhecer que os outros podem
discordar de nós sem ser bandidos. É uma moral incômoda.
Em geral, preferimos encarar o
casamento não como a construção laboriosa de uma vida juntos,
mas como uma rápida contabilidade de prazeres: está chato? Acabe logo.
Também preferimos acreditar
que a dedicação ao serviço público seja um conto do vigário ou,
melhor, do vigarista: trapaceie
sem escrúpulos, pois só há trapaceiros. Quanto a quem discorda
de você, mande matar ou, não podendo, impeça suas ações, sobretudo se elas forem certas: pouco
importa o bem comum, o essencial é que o adversário se rale.
Para desculpar essa mesquinhez, nada melhor que imaginá-la nos outros. Nossa mediocridade sairá melhor na foto, se puder
se confundir com a mediocridade
de todos.
ccalligari@uol.com.br
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