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FERREIRA GULLAR
E o cronista endoidou...
Vou falar hoje de um assunto
que talvez não seja assunto
de crônica, mas, como já disse que
ninguém sabe o que é crônica,
vou falar assim mesmo. O assunto
é o poema, uma tese sobre o poema, coisa que possivelmente não
interessa a ninguém e, quem sabe,
por isso mesmo eu deva falar dele.
Costumo dizer que o poema
não vale nada. Não vale nada no
mercado. Pouca gente compraria
um poema e, se comprasse, seria
barato, ou seja, ao preço do mercado. Não obstante, nem tudo é o
mercado. Há mais espaços na vida do que sonha a nossa vã filosofia.
Por exemplo, quando estava eu
no exílio, conheci um sujeito, economista, casado com uma linda
morena brasileira. Ele e ela freqüentavam regularmente aquelas reuniões um tanto fossentas de
exilados. Reuniões que não eram
tão alegres quanto os papos no
Jangadeiros ou no Vermelhinho,
mas era o que tínhamos e, em certas situações, é melhor alguma
coisa do que nada. Há divergências, é claro.
Pois bem, nessas reuniões o marido da brasileira bonita, que era
talvez chileno ou espanhol, costumava sentar-se ao meu lado e puxar conversa sobre economia. Citava números, estatísticas, percentagens, leis do mercado e eu,
sem muita alternativa, escutava.
Até chegar o momento azado em
que pedia licença a pretexto de ir
ao banheiro ou apanhar uma bebida e não voltava mais. E eis
que, inesperadamente, me contam que a tal morena brasileira
deixara o economista por um argentino. Pensei logo comigo: na
próxima reunião, se ele aparecer
por lá, vai ser pior ainda, aí é que
grudará comigo o tempo todo.
E chegou esse dia. Fui para a
reunião disposto a escapar do sujeito a qualquer preço e consegui
por algum tempo. Quando já estava no terceiro copo de cerveja,
distraí-me e ele se sentou a meu
lado. E sabem o que aconteceu?
Não falou um só palavra de economia -só falou de poesia, assunto que dominava muito bem.
Falou-me de seus poetas preferidos, que eram alguns de língua
espanhola, outros franceses, ingleses ou italianos. Sabia de cor
poemas de Eliot e de Fernando
Pessoa.
- Estou relendo meus poemas
queridos, confessou.
E então entendi: é que a morena
tinha ido embora e, quando a
morena vai embora, meu caro, só
a poesia nos socorre. É então que
ela se torna necessária.
Se tudo corre bem, a economia
basta, mas, se a morena se vai,
não há economia, nem trigonometria, nem geografia, ecologia,
paleontologia que dê jeito. Só
mesmo a poesia.
Com isso fica demonstrado por
que a poesia vale pouco no mercado: trata-se de um bem de consumo conspícuo. Mas, como os
poetas não escrevem para ganhar
dinheiro, essa pouca valia não os
desencoraja.
Esse é um aspecto deste assunto
que não interessa a ninguém; o
outro aspecto é que, além de valer
tão pouco, o poema não é inevitável. Explicando melhor: qualquer
poema que tenha sido escrito
-ainda que seja "A Divina Comédia"- poderia não ter sido escrito e, além disso, poderia ter sido escrito de outro modo, poderia
ser outro!
Vou dar um exemplo doméstico. Certa vez, escrevi um poema
inspirado na lembrança de minha casa de infância em São Luís
do Maranhão; uma casa antiga,
soalho de tábuas corridas e corroídas, com algumas fendas por
onde costumavam sumir minhas
poucas moedas. Mas uma manhã
caiu-me da mão uma moeda de
um cruzado (aquele velho cruzado, aliás velhíssimo cruzado) e
desapareceu por uma das fendas
do soalho. Decidi recuperá-la:
aproveitando o fato de que uma
das tábuas do cômodo estava solta, meti-me por baixo do soalho e
fui me arrastando no pó negro ali
depositado, que talvez por quase
um século não visse a luz do sol e
exalava insuportável fedor de
mofo. Recuperei a moeda, mas
nunca mais esqueci aquela aventura. O poema não contava essa
história, mas falava da "noite menor sob os pés da família" e da
"língua de fogo azul debaixo da
casa".
Isso foi em 1970. Meses depois,
tive que ir para a clandestinidade
e, um ano depois, para o exílio.
Fui parar em Moscou. E lá, de repente, ao lembrar-me do poema,
verifiquei que o perdera. Inconformado, resolvi escrevê-lo de novo e o consegui, tanto que ele foi
publicado no meu livro "Dentro
da Noite Veloz", editado em 1975,
quando eu já estava em Buenos
Aires.
Muito bem. Volto para o Brasil
em 1977 e, remexendo velhas pastas que aqui haviam ficado, encontro o poema dado por perdido.
Para minha surpresa, era bastante diferente do segundo, escrito
em Moscou. O que significa isso?
Significa, sem dúvida, que os poemas não têm uma forma inevitável e, como forma e conteúdo são
indissociáveis, tampouco seu conteúdo é inevitável. Se, naquele dia
em Moscou, eu tivesse encontrado
o primeiro poema, não teria escrito o segundo, e aquele ficaria como o único poema possível sobre
o tema, conclusão equivocada,
conforme acabo de demonstrar,
pois, como sugeriu Mallarmé, o
poema é um lance de dados que
jamais eliminará o acaso.
E digo mais: o poema não é a
expressão do que se viveu ou experimentou. Se eu sinto um cheiro
de jasmim na noite e escrevo um
poema sobre esse fato, o que faço
não é expressar tal experiência,
mas, na verdade, usá-la como impulso para inventar uma coisa
que não existia antes: o poema, o
qual se somará a todas as galáxias, planetas, cometas, oceanos e
tudo o mais que exista no universo. E o universo será, a partir de
então, tudo o que já era mais
aquele pequeno agregado de palavras, nascido de um perfume.
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