São Paulo, segunda-feira, 19 de junho de 2006

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Adeus às armas

Convidado da próxima Flip, o autor argentino Ricardo Piglia fala sobre seu romance, que aborda a Guerra das Malvinas, e sobre o futebol

"Clarín"


SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

"O futebol é como a vida: (quase) nunca ganha o melhor". Foi assim, orgulhoso, mas com toda a cautela, que o escritor argentino Ricardo Piglia, 64, respondeu ao pedido da Folha para que comentasse a goleada de 6 a 0 da Argentina contra a seleção de Sérvia e Montenegro, na última sexta-feira, na Copa do Mundo da Alemanha. "Coração e passes curtos, é o que chamamos de "la nuestra", ou o estilo argentino de jogar futebol", definiu a partida. No dia anterior, bem antes da festa de Riquelme, Tevez e cia., o mais importante autor do país aqui ao lado havia dado uma entrevista bem mais comedida e séria sobre o seu assunto propriamente dito, a literatura. Piglia virá ao Brasil em agosto para participar da Festa Literária Internacional de Parati. Nela, fará uma conferência sobre "o escritor como leitor", tema também de seu mais recente ensaio "El Último Lector" (2005), cuja tradução deve ser lançada aqui à época do evento. Leia abaixo os principais trechos.  

FOLHA - Em que você está trabalhando?
RICARDO PIGLIA
- Estou escrevendo contos. Como eu comecei por eles, voltar a esse gênero é como voltar a ser o escritor que fui na época em que dei meus primeiros passos na literatura. Também acabo de terminar uma primeira versão de um romance que se chama "Blanco Noturno", no qual estou trabalhando há tempos e que espero terminar no ano que vem.

FOLHA - E como é esse romance?
PIGLIA
- Trata-se de uma história que acontece durante a Guerra das Malvinas (1982), ainda que o conflito não seja o tema do livro. Emilio Renzi, personagem que aparece em vários livros meus, é o protagonista. No fundo, trata-se de uma história de amor em tempos de guerra. Ou a minha versão de "Adeus às Armas" [Ernest Hemingway]. De cara, o título se refere ao campo de batalha.

FOLHA - Em seus ensaios, você reflete muito sobre a literatura argentina, sobretudo sobre o século 19. Qual o legado daquele período à literatura argentina e internacional?
PIGLIA
- O século 19 foi o século das grandes utopias, enquanto o século 20 tratou de convertê-las em realidade. E ainda estamos pagando as conseqüências. No que diz respeito à literatura, o século 19 é o século do romance, grandes artistas como Dickens ou Tolstói, foram escritores muito populares. Depois o romance como gênero perdeu seu público e o relato social migrou para o cinema. Não foi, como se costuma dizer, pelo fato de os romancistas começarem a escrever romances experimentais que o romance perdeu seu público. Mas, justamente porque o romance perdeu seu público, é que foram possíveis obras como as de Joyce, Kafka ou Proust. De todos os modos, sempre temos a nostalgia dessa época em que grandes livros eram lidos por todos os lados.

FOLHA - Há um ano morreu Juan José Saer. Como você vê a literatura argentina hoje? Você ficou sozinho na linha de frente?
PIGLIA
- Ainda não temos consciência do que significou essa perda. Apenas por sua presença, um escritor como Saer, lúcido e sarcástico, ajudava a refrear os idiotas e os filisteus. Sua obra persistirá enquanto dure a literatura no mundo, mas sua inteligência luminosa e sua amizade nunca poderão ser substituídos.

FOLHA - Você vive parte do seu tempo nos Estados Unidos. Já pensou em escrever em inglês? O que acha de um autor escrever em uma língua que não é a sua?
PIGLIA
- Gosto de viver em uma língua estrangeira porque as vozes da cidade se tornam estranhas e longínquas. Sobretudo gosto de viver em uma língua e escrever em outra. Mas nunca pensei em escrever em inglês porque a língua materna é a única realidade a que um escritor deve ser fiel, ou tentar ser fiel, durante toda a sua vida. É claro que alguns escritores, como Samuel Beckett ou Franz Kafka, são capazes de fazer próprias qualquer língua em que escrevam.

FOLHA - Como você vê a América Latina hoje? Acredita na tese de Jorge Castañeda, que escreveu um artigo na revista "Foreign Affairs" distinguindo uma esquerda "boa" (representada por Lula e Bachelet) e uma esquerda "má" (representada por Kirchner, Chávez e Morales)?
PIGLIA
- Depois da experiência das ditaduras e da catástrofes neoliberais na América Latina, todas as esquerdas serão bem-vindas.

FOLHA - Você acha que a literatura latino-americana hoje, em geral, reflete o momento político que vive o continente? Mais ou menos do que na época das ditaduras?
PIGLIA
- De modo geral, digamos que nunca há uma relação imediata entre os acontecimentos políticos e a escritura de ficção. Saer pensou seu último romance, "La Grande", como um livro sobre a pobreza. E é um livro sobre a pobreza (por isso seu personagem central é um novo rico). E esse é o modo, sempre elíptico e elusivo, que tem a literatura de falar da realidade.

FOLHA - Você tem lido algo de literatura brasileira recentemente?
PIGLIA
- Gostei muito do romance de Silviano Santiago sobre Graciliano Ramos. Me sinto muito próximo dessa obra e ia escrever um prólogo para a edição argentina, mas no final não foi possível.


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