São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2004

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CRÍTICA

Com criadores e criaturas, álbum atualiza essência de alegre desolação

BRUNO YUTAKA SAITO
DA REDAÇÃO

Robert Smith conheceu bem de perto os meandros da fé, da pornografia, do desejo e da desintegração. Personagem de si mesmo, estabeleceu ao longo dos anos 80 os parâmetros do gótico dentro da música pop. Com o The Cure, virou sinônimo de esquisitice ambulante e visões embaçadas da realidade. Nada mais normal que sua década perdida particular tenha sido os anos 90, quando lançou discos irrelevantes.
"The Cure", o novo álbum, é muito mais do que um caso de simples reintegração, o primeiro disco decente da banda desde "Wish" (1992). Num certo sentido, é como se fosse um tratado sobre o rock teen americano dos anos 2000. Criador e criatura se confraternizam pela primeira vez.
Criador: Robert Smith influenciou, no visual ou no som, grande parte da geração atual do nu metal e do emocore. Criatura: Ross Robinson, o produtor, fã de longa data de Smith, facilitou a cadeia alimentar. O Cure renovado recebe ecos de Korn, Blink-182 e.... do próprio Cure, quando seus integrantes tinham 20 e poucos anos.
O álbum reflete essa herança. "Lost" abre o material inédito e, já nos primeiros segundos, vemos que há algo estranho. "Não consigo me encontrar", lamenta Smith, enquanto uma guitarra suja, repetitiva, e uma bateria marcial, repleta de "quebradas", evocam o clima claustrofóbico e sombrio de "Pornography" (1982).
Em "Labyrinth", o mistério já começa a se esclarecer. Aqui, as paradinhas de bateria e o baixo distorcido não negam: o novo Cure é parente direto no nu metal. A faixa define também a temática de metade do álbum: aqueles mesmos assuntos que fizeram a cabeça de fãs -identidade perdida, vontade de congelar o tempo.
Mas o Cure nunca foi apenas trevas. Por trás da máscara, dos quilos de maquiagem e do batom borrado, Smith revela-se humano pelas contradições. Suicida em potencial na teoria, encontra na expressão caricata da felicidade sua redenção. "Before Three" abre o caminho para o lado pop da banda e tolas declarações de amor à pessoa amada. "The End of the World", o single, flagra um retorno à adolescência, com uma letra que remói o final de um namoro (quantas bandas de emocore não fazem dúzias de músicas sobre o mesmo assunto?).
Fãs de longa data poderão até se aborrecer. Os teclados climáticos de "Anniversary" retomam "A Strange Day"; "Taking Off" é quase um autoplágio (de "Just Like Heaven"), enquanto a ótima "The Promise" e "Going Nowhere" recuperam "Disintegration".
"The Cure" está longe de se inscrever entre os clássicos do grupo. Empolga muito mais pelo espírito de renovação e animação quase juvenil do que pelas suas qualidades musicais. Para uma banda que se transformou numa instituição burocrática, que só toca em estádios, está ótimo.
Essa herança é onipresente, pelo menos por enquanto, como mostra o Curiosa -festival com grupos influenciados pelo Cure, mas que seguem mais o espírito do pós-punk. Hoje rechonchudo, figura tão folclórica quanto um Papai Noel vestido de preto, Smith volta a escrever novos capítulos da história do pop.


The Cure
   
Lançamento: Universal
Quanto: R$ 40, em média



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