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CRÍTICA
Com criadores e criaturas, álbum atualiza essência de alegre desolação
BRUNO YUTAKA SAITO
DA REDAÇÃO
Robert Smith conheceu bem
de perto os meandros da fé,
da pornografia, do desejo e da desintegração. Personagem de si
mesmo, estabeleceu ao longo dos
anos 80 os parâmetros do gótico
dentro da música pop. Com o The
Cure, virou sinônimo de esquisitice ambulante e visões embaçadas
da realidade. Nada mais normal
que sua década perdida particular
tenha sido os anos 90, quando
lançou discos irrelevantes.
"The Cure", o novo álbum, é
muito mais do que um caso de
simples reintegração, o primeiro
disco decente da banda desde
"Wish" (1992). Num certo sentido, é como se fosse um tratado sobre o rock teen americano dos
anos 2000. Criador e criatura se
confraternizam pela primeira vez.
Criador: Robert Smith influenciou, no visual ou no som, grande
parte da geração atual do nu metal e do emocore. Criatura: Ross
Robinson, o produtor, fã de longa
data de Smith, facilitou a cadeia
alimentar. O Cure renovado recebe ecos de Korn, Blink-182 e.... do
próprio Cure, quando seus integrantes tinham 20 e poucos anos.
O álbum reflete essa herança.
"Lost" abre o material inédito e, já
nos primeiros segundos, vemos
que há algo estranho. "Não consigo me encontrar", lamenta Smith,
enquanto uma guitarra suja, repetitiva, e uma bateria marcial, repleta de "quebradas", evocam o
clima claustrofóbico e sombrio de
"Pornography" (1982).
Em "Labyrinth", o mistério já
começa a se esclarecer. Aqui, as
paradinhas de bateria e o baixo
distorcido não negam: o novo Cure é parente direto no nu metal. A
faixa define também a temática de
metade do álbum: aqueles mesmos assuntos que fizeram a cabeça de fãs -identidade perdida,
vontade de congelar o tempo.
Mas o Cure nunca foi apenas
trevas. Por trás da máscara, dos
quilos de maquiagem e do batom
borrado, Smith revela-se humano
pelas contradições. Suicida em
potencial na teoria, encontra na
expressão caricata da felicidade
sua redenção. "Before Three"
abre o caminho para o lado pop
da banda e tolas declarações de
amor à pessoa amada. "The End
of the World", o single, flagra um
retorno à adolescência, com uma
letra que remói o final de um namoro (quantas bandas de emocore não fazem dúzias de músicas
sobre o mesmo assunto?).
Fãs de longa data poderão até se
aborrecer. Os teclados climáticos
de "Anniversary" retomam "A
Strange Day"; "Taking Off" é quase um autoplágio (de "Just Like
Heaven"), enquanto a ótima "The
Promise" e "Going Nowhere" recuperam "Disintegration".
"The Cure" está longe de se inscrever entre os clássicos do grupo.
Empolga muito mais pelo espírito
de renovação e animação quase
juvenil do que pelas suas qualidades musicais. Para uma banda
que se transformou numa instituição burocrática, que só toca em
estádios, está ótimo.
Essa herança é onipresente, pelo
menos por enquanto, como mostra o Curiosa -festival com grupos influenciados pelo Cure, mas
que seguem mais o espírito do
pós-punk. Hoje rechonchudo, figura tão folclórica quanto um Papai Noel vestido de preto, Smith
volta a escrever novos capítulos
da história do pop.
The Cure
Lançamento: Universal
Quanto: R$ 40, em média
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