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JOÃO PEREIRA COUTINHO
O sangue de Espanha
Há 70 anos uma rebelião militar deu início à guerra civil, mas foi uma luta onde os bons não apareceram
MADRI. AINDA hoje não sei como foi possível transformar um dos sítios mais
inóspitos do mundo em capital espanhola e européia. Calor feroz. Paisagem urbana sem esplendor nem
grandeza, ao contrário de Sevilha,
mais ao sul. Foi Carlos 5º quem, no
século 16, acreditou no milagre: os
ares do planalto seriam a cura da gota, de que ele sofria. Pobre Carlos.
Pobre Espanha. São nove meses de
inverno e três de inferno.
Mas os tempos estão animados. A
Catalunha é hoje semi-independente, após anos de luta autonômica. É
possível que o País Basco siga igual
caminho. E eu, perdido na Plaza Mayor, não posso deixar de pensar o
que diria o "caudilho" Franco da Espanha atual, a caminho da fragmentação política, ou seja, enterrando as
ambições unitárias dos nacionalistas, que saíram à rua há 70 anos.
Sim, 70 anos atrás. Dia 18 de julho.
Lembram? Foi quando uma rebelião militar deu início à Guerra Civil
de Espanha (1936-1939). Mas como
falar de um conflito sem entrar em
maniqueísmos ignaros? Não é fácil.
De acordo com a versão infantil da
guerra, popularizada durante décadas por uma historiografia preguiçosa e ideologicamente comprometida, tudo foi simples: em 1936, a
Frente Popular, uma simpática
agremiação de democratas sem malícia (ou milícia), ganhou as eleições.
A "direita", uma mistura antipática
de conservadores, monárquicos e
fascistas, não tolerou e reagiu. Foi o
princípio do fim.
De um lado, os bons: os republicanos, apoiados pela "democracia" de
Moscou e pelos intelectuais que
acorreram ao conflito. Do outro, os
maus: os nacionalistas, que a Itália e
a Alemanha armavam. A Espanha
de 1936 era uma luta de morte entre
a democracia e o fascismo. O fascismo venceu. Até 1975.
Ninguém acredita mais nesta simplória versão dos fatos, corrigida nos
últimos anos por Antony Beevor ou
Stanley Payne, para citar apenas
dois nomes centrais de uma historiografia moderna que se beneficiou, e muito, da abertura dos arquivos soviéticos. E, se todos conhecemos as atrocidades de Franco, capaz
de mandar fuzilar opositores do regime entre duas garfadas de paella, o
que teria sucedido à Espanha se a
República tivesse vencido?
Não seria, com certeza, uma democracia parlamentar, respeitadora
das liberdades civis e religiosas, como os próprios republicanos se encarregaram de mostrar desde, pelo
menos, 1934: ou a Espanha seguia o
curso soviético, garantia Largo Caballero, líder dos socialistas, ou a
guerra seria o único caminho. A
guerra foi o único caminho: depois
de 1936, com uma vitória tangencial
por 150 mil votos, a Frente Popular
entendia que um tão magro mandato autorizava tudo. Centenas de
igrejas queimadas. Centenas de assassinatos políticos. E um pretexto
para a guerra.
Uma vitória da "esquerda" em
1939 teria transformado a Espanha
do século 20 na Romênia do século
20: um longo regime comunista que,
provavelmente, só a queda do Muro,
em 1989, teria libertado de vez. Uma
luta entre bons e maus? Não. Uma
luta onde os bons simplesmente não
apareceram.
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