São Paulo, sábado, 19 de julho de 2008

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Crítica/teatro/"O Retorno ao Deserto"

Drama de Koltès diminui a distância entre França e Brasil

"O Retorno ao Deserto", com Sandra Corveloni, tem últimas exibições hoje e amanhã

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Destaque no 8º Festival Internacional de São José do Rio Preto e uma espécie de anúncio do Ano da França no Brasil, "O Retorno ao Deserto", de Bernard-Marie Koltès, pela Compagnie Dramatique Parnas, dá mostras de uma nova postura nas relações culturais entre Brasil e Europa, ou o "aqui" e o "lá fora", como costuma dizer nossa claustrofobia neocolonialista. Dirigida por Catherine Marnas, o projeto rompe com a tradição catequética das luzes sobre a floresta tropical, que desde Louis Jouvet até Peter Brook alimenta uma expectativa de aprendizagem com os mestres estrangeiros. Discípula de Antoine Vitez, Marnas busca um teatro atento em reverberar o contemporâneo, o popular e o multinacional, mais do que promover uma cartilha de franceses consagrados.
Koltès já é bem conhecido no Brasil, com bem-sucedidas montagens de "A Solidão nos Campos de Algodão", de Paulo José, e "A Noite Antes da Floresta", de Francisco Medeiros. "O Retorno ao Deserto", sua penúltima peça, de 1988, toca em uma ferida francesa, a má consciência pela guerra da Argélia, que ainda não parou de sangrar entre xenófobos e imigrantes nas periferias de Paris.
O espetáculo se ressente da marca do teatro francês, que costuma contar com um público escolado pelo texto, mas que aqui parece longo e redundante, apesar da lírica retórica de Koltès, parcialmente traduzido por Angela Leite Lopes. Mas a solução na manga de Marnas se revelou particularmente eficaz: o espetáculo é bilíngüe.
Inspirado talvez pelo conceito "artaudiano" do duplo, a maioria dos personagens é desdobrada em dois, cada um falando seu idioma. Apresenta-se assim a saga de Mathilde, que, tendo sido denunciada como colaboracionista dos alemães pelo seu irmão Adrien (por interesses de herança), volta do exílio na Argélia com os filhos Fátima e Edouard para reocupar sua casa. Um conflito insolúvel, diante dos perplexos empregados Aziz e Madame Queuleu, além de Mathieu, o filho mimado de Adrien, que nunca pode sair de casa. Não se imagine aqui franceses soprando seu espírito para corpos brasileiros. Se, na dupla de Mathieu, Davi Rosa tem um desempenho carismaticamente caricatural nuançado pelo melancólico Julien Duval, Gustavo Trestini e Olivier Pauls compartilham a mesma visceralidade. Para Mathilde, é Benedicte Simon que fixa uma máscara de escárnio atenuada pela sutil elegância de Sandra Corveloni (que recentemente em Cannes ajudou a desfazer as fronteiras anacrônicas entre o aqui e o lá fora).
Assim, o tema de desenraizamento, das falsas armadilhas da herança contra o estrangeiro, universaliza-se pela leitura franco-brasileira. A guerra argelina nos é distante, mas o empregado de cor menosprezada cuidando da nossa propriedade, não. Que o Ano da França no Brasil, mais que uma catequese, possa continuar sendo esse mobilizador compartilhamento de uma perplexidade.

O RETORNO AO DESERTO
Quando: hoje, às 21h, e amanhã (último dia), às 18h
Onde: Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141, tel. 0/xx/11/5080-3000)
Quanto: R$ 7,50 a R$ 30
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 12 anos
Avaliação: bom



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