São Paulo, sábado, 19 de julho de 2008

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LIVROS

"Eu Fui Vermeer" testa limites da crítica

Para jornalista, falsificação do holandês Han Van Meegeren ajudou a tornar Vermeer "estrela" do porte de Rembrandt

"Dizem que Van Meegeren pôde ter sucesso durante a Segunda Guerra porque era mais difícil autenticar pinturas, mas não é verdade"


DA REPORTAGEM LOCAL

Uma das formas mais tentadoras de descrever o falsário Han van Meegeren (1889-1947) é retratar um artista ressentido com os críticos, que usa seu talento irrealizado para debochar do mundo artístico.
Mas Frank Wynne evita a armadilha. Para o jornalista irlandês, como disse à Folha, Van Meegeren é do tipo "que tem talento técnico, mas nada a dizer com sua própria arte". Diferente, segundo Wynne, de nomes como Geert Jan Jansen ou Eric Hebborn, "que gostam do desafio de imitar o estilo de outros artistas, enganando os críticos, jogando com o prejuízo e com as esperanças deles".
Isso não quer dizer que o autor não mostre uma personalidade ímpar em uma Europa que sucumbia com a guerra. "Alguém como Van Meegeren, que tenta falsificar "velhos mestres", precisa ser um historiador, artista, químico e sobretudo mentiroso, criando histórias plausíveis e documentos que justifiquem a procedência para um trabalho que nunca existiu", diz.
O calcanhar-de-aquiles do falsário foi o "seu" Vermeer "Cristo com a Mulher Surpreendida em Adultério", vendido (não diretamente) para Hermann Göring, braço-direito de Hitler. Depois que a guerra acabou, o holandês ficou numa situação difícil e acabou preso. Ou tinha vendido a obra-prima para os nazistas (crime gravíssimo), ou confessava a falsificação e se assumia como um escroque. Acabou confessando, mas daí precisou convencer os próprios críticos que pouco antes tinham saudado e autenticado com convicção os Vermeers redescobertos.
Natural portanto que a história desse holandês afável, bon-vivant, viciado em morfina, tenha virado um calcanhar-de-aquiles também para a crítica.
Wynne, que também é tradutor e verteu para o inglês o iconoclasta escritor francês Michel Houellebecq, recheia seu livro com citações bem-humoradas. Para sorte do leitor, o autor teve a esperteza de dar graça a todo o anedotário que cerca o caso, inclusive a suposta reação perplexa de Göring, na prisão, ao descobrir que seu maior tesouro era uma fraude. Diz a lenda que nesse momento "se deu conta da existência do mal pela primeira vez".
O caso Van Meegeren não é desconhecido nem inédito, mas é um dos mais emblemáticos, além de saboroso. Contando a mesma história, por exemplo, também está saindo nos EUA "The Forger's Spell" (o feitiço do falsificador, Harper, 368 págs., US$ 26,95, cerca de R$ 43 mais frete), de Edward Dolnick. "Dizem com freqüência que Van Meegeren pôde ter sucesso durante a Segunda Guerra porque era mais difícil autenticar pinturas, mas não é verdade. As carreiras de Elmyr de Hory nos anos 50, de Eric Hebborn e Tom Keating nos anos 70 e de John Myatt ou Geert Jan Jansen nos anos 90 superaram em muito a mera contribuição de sete falsificações", diz Wynne.
São personagens que desestabilizam a autoridade dos especialistas e podem virar do avesso um "mundo de investimento, leilões e publicidade", como define Wynne o mercado de arte. Além disso, freqüentemente são interessantes, como o Hory citado acima, o protagonista do genial "F for Fake" (1974), de Orson Welles, ele mesmo um notório "falsificador" que testou os limites entre verdades e mentiras no rádio.
E no caso do holandês, há ainda a personalidade do próprio Vermeer (1632-1675), que tem só 35 telas reconhecidas e, acredita Wynne, teria se beneficiado postumamente da ação do compatriota. "O que tornou Vermeer uma "estrela" do porte de Rembrandt é o fato do crítico Thomas Bodkin, em 1940, ter chamado de "descoberta sensacional" a "soberba" "Ceia em Emaús'". "Ceia em Emaús", obra-prima que saiu dos pincéis de Van Meegeren. Obra-prima?


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