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São Paulo, terça-feira, 19 de agosto de 2003

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ERUDITO

A "Canção da Terra" e o esvaziamento do mundo

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Dunkel ist das Leben, ist der Tod." Escura é a vida, escura é a morte; esse refrão sombrio assombra o ciclo inteiro da "Canção da Terra" de Mahler (1860-1911), como assombra a memória, para sempre, de quem escuta. Interpretada pela Osesp no sábado à tarde, sob a regência de John Neschling, essa quase-sinfonia soou mais triste do que nunca, no dia da morte do poeta Haroldo de Campos, que chegou aos céus assim, carregado na música.
Não existem coincidências, como dizia o contemporâneo de Mahler, Sigmund Freud; e será inevitável, daqui para a frente, pensar em Haroldo a cada vez que se escutar a "Canção da Terra". Mahler empregou como texto uma seleção de poemas da China antiga, recolhidos de uma antologia de traduções de H. Bethge. Mas o movimento de apropriação e recriação desses poemas pela música caracteriza o que nosso poeta chamava de "transcriação": o surgimento de novos poemas em outra língua, que se altera, ela mesma, pela invasão do estranho.
O "poema", no caso, é uma das grandes sinfonias modernas, compreendida assim por John Neschling. O que o maestro chamou de "ecologia", ao falar brevemente sobre a peça, não diz só respeito às cenas naturais que poesia e música fazem surgir, por mágica, na nossa cabeça. Mais do que o encantamento sensível, o que está em jogo é a desintegração progressiva dos sentidos, um esvaziamento do mundo, que chega ao ponto crítico no adágio final, onde a música nem mais se esforça para preservar a unidade.
Só uma orquestra madura é capaz de se desmanchar com tamanha eloquência, ou antieloquência. Já estava tudo dito no acorde grave do início da "Despedida", a combinação de contrabaixos, harpas e tantã, resumida ao máximo depois no dó grave dos violoncelos, a quarta corda vibrando nas profundezas. Os solos de oboé (Joel Gisiger) e flauta (o excelente músico convidado Mauricio Freire) só explicitam ou elaboram o que um som desses guarda sozinho em si.

Sombra e sol
O contraste com momentos solares ou esfuziantes, como o da cavalgada na quarta canção, ou de humor torcido, no final da canção do "Bêbado na Primavera", reforça a vastidão da desesperança -que Mahler tem de vencer, apesar de tudo, com seu apego às coisas da terra. É uma quase-esperança, um viço de renovação, uma força humana que só a presença de poetas como Haroldo de Campos conseguia sustentar, por nós e para nós, nesses tempos escuros.
Desse ponto de vista, a interpretação da mezzo-soprano alemã Cornelia Wulkopf e do tenor austríaco Wolfgang Ablinger-Sperrhacke soaram adequadamente pouco estrelares. Mesmo os vários pontos em que foram engolidos pela orquestra faziam involuntário sentido, num ambiente de desconstrução geral. Para falar como o filósofo Theodor Adorno (num ensaio sobre Mahler, incluído em "Quasi una Fantasia"), a música de Mahler traduz musicalmente um estado de incerteza: entre o aniquilamento e a diferença.
Foi bom escutar, antes disso, a nova "Vereda", de Marisa Rezende (1944). Faz diferença, sempre, ter música nova. Haroldo:
falas
muda
música
mortal

e o pássaro de vênus turturina.


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