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ERUDITO
A "Canção da Terra" e o esvaziamento do mundo
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
"Dunkel ist das Leben, ist
der Tod." Escura é a vida,
escura é a morte; esse refrão sombrio assombra o ciclo inteiro da
"Canção da Terra" de Mahler
(1860-1911), como assombra a
memória, para sempre, de quem
escuta. Interpretada pela Osesp
no sábado à tarde, sob a regência
de John Neschling, essa quase-sinfonia soou mais triste do que
nunca, no dia da morte do poeta
Haroldo de Campos, que chegou
aos céus assim, carregado na música.
Não existem coincidências, como dizia o contemporâneo de
Mahler, Sigmund Freud; e será
inevitável, daqui para a frente,
pensar em Haroldo a cada vez que
se escutar a "Canção da Terra".
Mahler empregou como texto
uma seleção de poemas da China
antiga, recolhidos de uma antologia de traduções de H. Bethge.
Mas o movimento de apropriação
e recriação desses poemas pela
música caracteriza o que nosso
poeta chamava de "transcriação":
o surgimento de novos poemas
em outra língua, que se altera, ela
mesma, pela invasão do estranho.
O "poema", no caso, é uma das
grandes sinfonias modernas,
compreendida assim por John
Neschling. O que o maestro chamou de "ecologia", ao falar brevemente sobre a peça, não diz só
respeito às cenas naturais que
poesia e música fazem surgir, por
mágica, na nossa cabeça. Mais do
que o encantamento sensível, o
que está em jogo é a desintegração
progressiva dos sentidos, um esvaziamento do mundo, que chega
ao ponto crítico no adágio final,
onde a música nem mais se esforça para preservar a unidade.
Só uma orquestra madura é capaz de se desmanchar com tamanha eloquência, ou antieloquência. Já estava tudo dito no acorde
grave do início da "Despedida", a
combinação de contrabaixos,
harpas e tantã, resumida ao máximo depois no dó grave dos violoncelos, a quarta corda vibrando
nas profundezas. Os solos de oboé
(Joel Gisiger) e flauta (o excelente
músico convidado Mauricio Freire) só explicitam ou elaboram o
que um som desses guarda sozinho em si.
Sombra e sol
O contraste com momentos solares ou esfuziantes, como o da
cavalgada na quarta canção, ou de
humor torcido, no final da canção
do "Bêbado na Primavera", reforça a vastidão da desesperança
-que Mahler tem de vencer, apesar de tudo, com seu apego às coisas da terra. É uma quase-esperança, um viço de renovação,
uma força humana que só a presença de poetas como Haroldo de
Campos conseguia sustentar, por
nós e para nós, nesses tempos escuros.
Desse ponto de vista, a interpretação da mezzo-soprano alemã
Cornelia Wulkopf e do tenor austríaco Wolfgang Ablinger-Sperrhacke soaram adequadamente
pouco estrelares. Mesmo os vários pontos em que foram engolidos pela orquestra faziam involuntário sentido, num ambiente
de desconstrução geral. Para falar
como o filósofo Theodor Adorno
(num ensaio sobre Mahler, incluído em "Quasi una Fantasia"), a
música de Mahler traduz musicalmente um estado de incerteza: entre o aniquilamento e a diferença.
Foi bom escutar, antes disso, a
nova "Vereda", de Marisa Rezende (1944). Faz diferença, sempre,
ter música nova. Haroldo:
falas
muda
música
mortal
e o pássaro de vênus turturina.
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