|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Proposta para a criação da Anlivimp
Li o projeto de lei que instituiria a Ancinav, Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual.
Fui conquistado pelos argumentos. Sugiro que o governo institua uma agência análoga para
fiscalizar a produção e a difusão
de ficção, ensaios e poesia: a Anlivimp, Agência Nacional do Livro
e dos Impressos.
À diferença dos jornais e das revistas (que também é urgente monitorar), os livros atingem um número reduzido de cidadãos. Mesmo assim, eles influenciam, direta
ou indiretamente, "os valores éticos, históricos, políticos e sociais
cultivados pelo povo".
Portanto não podemos deixar
que sua produção e difusão fiquem nas mãos dos autores (que
são pessoas suspeitas, freqüentemente vistas em botecos) e das
editoras (que podem ser ligadas a
capitais estrangeiros e que sempre
preferem os livros que se vendem
bem). Ainda menos podemos
confiar no critério dos leitores,
que são profundamente alienados, visto que compram livros diferentes dos que nós gostaríamos
que eles lessem.
Agora, para o bem da nação, a
produção e a distribuição serão
fiscalizadas de maneira a oferecer, não obras que fazem sonhar e
que divertem, mas obras que
apresentem "finalidades educativas, artísticas e informativas" e
obras que protejam "os valores
éticos e sociais da pessoa e da família". Com isso, o setor editorial
evoluirá de maneira "harmônica
com as metas do desenvolvimento
social do país". É bom que essas
indicações sejam vagas, de forma
a justificar qualquer intervenção
que a Anlivimp venha a julgar
necessária.
Não se trata de instituir uma
censura. Na regulação das atividades literárias e editoriais, "a liberdade será a regra, constituindo exceção as proibições, restrições e interferências do Poder Público". Como as leis repressivas
são sempre decretadas como "leis
excepcionais", seria melhor evitar
o termo "exceção", pois a imprensa é maldosa e se pega a esses detalhes.
A Anlivimp promoverá a "produção independente" de obras
"atentas à valorização da cultura
brasileira e de suas peculiaridades regionais", assegurando "o direito dos brasileiros de ver e produzir sua imagem" nos textos escritos como no audiovisual. Graças aos fundos arrecadados com
impostos e multas, a Anlivimp financiará obras recusadas pelas
editoras dinheiristas e cosmopolitas. Um poema de 48 mil versos
em rima, escrito por um conhecido meu e engavetado pela ganância das editoras, será enfim apreciado. O poema é como a gente
gosta: regionalista e educativo,
pois trata de uma épica luta sertaneja para parar de fumar. Seu
título e primeiro verso (conhecido
pelos sortudos que tiveram acesso
à obra) é "O Cangaceiro de Aço
Acabou Seu Maço".
A Anlivimp aumentará "a competitividade da produção" literária e editorial brasileira -tanto
no país como no exterior.
No exterior, combinaremos
nossas promoções editoriais com
as promoções turísticas. Por
exemplo, distribuiremos folders
representando o Cangaceiro de
Aço e uma sambista mulata, ambos sorrindo enquanto balançam
a rede em que um turista estrangeiro toma uma caipirinha. Não é
uma boa?
No país, a coisa vai ser fácil,
pois, por sorte, o leitor brasileiro é
pobre. Bastará aumentar o imposto sobre as obras estrangeiras
para que ele escolha as nacionais.
Ora, os livros e impressos de autores estrangeiros serão sujeitos ao
Fome-Cultura (o imposto de Fomento Editorial), de 150%.
Serão fiscalizadas as vitrinas.
As livrarias, sob pena de multa,
reservarão 50% de seu espaço de
exposição a autores nacionais,
30% a autores regionais locais, e
só nos 20% restantes será permitido expor obras de autores estrangeiros.
A cada encomenda de livro de
autor estrangeiro, as livrarias deverão comprar três exemplares de
livros de autores nacionais. As pilhas acumuladas transmitirão ao
público a impressão de um sucesso e o encorajarão a comprar.
Outro caso (que exigirá um Fome de 250%) é o dos impressos
importados, particularmente perniciosos por ameaçarem a soberania da língua nacional. Sabemos
de fonte autorizada que 30% dos
impressos vendidos pela livraria
Cultura são em língua estrangeira. No lançamento do último volume da série de Harry Potter, a
livraria vendeu mais de mil
exemplares da edição em inglês só
em São Paulo. Para onde vai a
nação, se os jovens, que mal
aprenderam a língua portuguesa,
já lêem numa outra língua? Isso
sem considerar que as histórias de
Harry Potter, como mostrou um
francês (melhor não citá-lo no
texto definitivo; afinal, é um estrangeiro), talvez não estejam em
harmonia com nossas metas e
não promovam os valores que nos
importam.
O Ministério da Cultura poderia também instituir a Andim
(Agência Nacional do Disco e das
Músicas), para fiscalizar a produção e a difusão de gravações de
músicas e intérpretes estrangeiros
ou de intérpretes nacionais em
língua estrangeira (caso mais
grave ainda). Seria ingênuo subestimar a influência da música
sobre os costumes etc.
1) Esta coluna é irônica. Voltarei ao assunto para tentar entender a paixão de fiscalizar que, às
vezes, se apodera de quem governa.
2) As citações são extraídas do
preâmbulo e dos artigos 1 a 8 do
projeto de lei que instituiria a Ancinav.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Literatura: Bush toma "marretadas" em versos Próximo Texto: Panorâmica - Música: Provas contra Jackson vão a julgamento Índice
|