São Paulo, sexta-feira, 19 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Lavoro, salute o amore

Não vi os letreiros iniciais do filme nem foi preciso. Passava da meia-noite. Sem sono e sem vontade de ler, liguei a TV e dei com o canal da RAI, onde uma antiga chanchada italiana já havia começado. Apesar da intimidade com os atores daquela época, não identificava nenhum dos personagens, até que, no momento em que ia mudar de canal, apareceu o Nemmo Carotunuto, que sempre fazia papéis secundários, mas brilhantes, nos filmes de Monicelli, Lattuada e outros. Sua grande hora chegou naquela deliciosa paródia "I Soliti Ignoti" ("Os Eternos Desconhecidos"), de Monicelli, quando aponta uma arma para o caixa da loja de penhores e pergunta, com voz de criminoso: "Sabe o que é isso?".
Era um assalto. Rotineiramente, o homem do guichê apanha a arma e, depois de examiná-la, responde: "Uma Beretta modelo B4 em mau estado. Duas mil liras".
Bem, quando vi Nemmo Carotunuto em cena, decidi permanecer no canal da RAI para ver no que o filme iria dar. Em linhas gerais, foi uma decepção. O filme é ruinzinho, salvo pela presença do grande ator monicelliano e da canção-tema, sensual, ao gosto dos anos 60 de Roma, anos de "La Dolce Vita".
E logo uma cena me fez pensar. Nemmo Carotunuto, como sempre, faz o papel de um vigarista especializado em golpes baixos. É um mago, um "professore Mago", adivinha o futuro dos clientes e dá conselhos. O cenário é terrível, como compete a uma chanchada: além da indefectível bola de cristal, caveira, morcegos e símbolos de magia negra estão espalhados pela mesa em que ele recebe os clientes.
Chega uma jovem, paga a consulta ao secretário e é admitida ao sacrário onde o mago vive em permanente concentração espiritual. A jovem senta-se, tímida, envergonhada. Para encorajá-la, o mago abre o leque do seu ofício, oferecendo-lhe o cardápio de seus serviços:
"Lavoro, salute o amore?" (trabalho, saúde ou amor?).
Congelei a imagem, nada mais me interessou no filme, que, aliás, pouco estava me interessando. Fiquei pensando na fulminante síntese da condição humana lançada de forma tão avacalhada. Nem no teatro grego, que me custou anos de estudo no seminário, nem em filósofos como Sócrates e santo Agostinho, nem em poetas como Shakespeare e John Donne, nem nos pensadores que mais me marcaram, Montaigne e Pascal, em nenhum deles encontrei tão breve e definitiva visão do Universo onde o homem, ao longo dos séculos e enquanto for homem, encontrará os desafios de sua condição e circunstância.
Toda a problemática que obriga o ser humano a apelar para as forças superiores que acredita estarem guiando o seu destino fica reduzida à pauta que o Mago Della Fontana (é o nome do personagem) propõe a quem o procura para entender o passado, enfrentar o presente e preparar-se para o futuro. Tudo isso pelo módico preço de mil liras, que, na época, deviam equivaler, em nossa moeda, a um real de hoje. (As notas de mil liras eram depositadas numa réplica da Fontana de Trevi, cafonérrima, que servia para dar nome ao mago, Mago della Fontana).
Trabalho, saúde e amor. Não há problema que escape dos três cenários onde se desenrolam nossos dramas, espantos e alucinações, a vida de todos nós, independentemente de épocas, raças e países. Queremos saber o que nos espera no trabalho, na saúde e no amor.
O que pode variar é a ordem das parcelas. Em determinados momentos da trajetória, a saúde pode ser mais importante do que o trabalho e o amor. As prioridades se alternam, mas permanecem confinadas nos três nichos ou ninhos onde colocamos nossos ovos, esperando ver nascer deles o pintinho de nossa esperança.
Mas, de uma forma ou outra, a alternância das prioridades somos nós mesmos que a fazemos. Diz o "Eclesiastes" que há tempo para tudo, tempo para plantar e para colher, tempo para rir e tempo para chorar.
Daí que haverá tempo em que o amor será prioridade fundamental, justificando o fato de estarmos no mundo, mundo que também nos maltrata com problemas de saúde e trabalho. Mas há momentos em que o trabalho, a obrigação de ganhar o pão de cada dia sobe à "pole position"; de nada adiantam a saúde e o amor se nossas relações profissionais estão tumultuadas, incertas, frustrantes, criando mágoas ou depressões.
Finalmente a saúde. Feliz no amor, bem-sucedido no trabalho, se a saúde vai para o brejo, de nada valerão o amor correspondido, o trabalho reconhecido e bem remunerado. Fora desses três escaninhos da condição humana, tudo o mais é redundante.
Antes que os clientes abrissem a boca para se queixar dos patrões, dos salários e dos colegas de repartição; antes de lamuriar as dores nas pernas ou nos intestinos; antes de reclamar das traições, desencontros e insídias da pessoa amada -o Mago della Fontana, como um maître de restaurante, apresentava o insubstituível menu (trabalho, saúde e amor), pratos únicos servidos "à la carte", preparados alternadamente na complicada fornalha onde somos cozinhados.


Texto Anterior: Literatura: Viúva prepara a despedida de Thompson
Próximo Texto: Lúcida, Malu Mader recebe alta da UTI
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.