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CARLOS HEITOR CONY
Lavoro, salute o amore
Não vi os letreiros iniciais do
filme nem foi preciso. Passava da meia-noite. Sem sono e sem
vontade de ler, liguei a TV e dei
com o canal da RAI, onde uma
antiga chanchada italiana já havia começado. Apesar da intimidade com os atores daquela época, não identificava nenhum dos
personagens, até que, no momento em que ia mudar de canal,
apareceu o Nemmo Carotunuto,
que sempre fazia papéis secundários, mas brilhantes, nos filmes de
Monicelli, Lattuada e outros. Sua
grande hora chegou naquela deliciosa paródia "I Soliti Ignoti"
("Os Eternos Desconhecidos"), de
Monicelli, quando aponta uma
arma para o caixa da loja de penhores e pergunta, com voz de criminoso: "Sabe o que é isso?".
Era um assalto. Rotineiramente, o homem do guichê apanha a
arma e, depois de examiná-la,
responde: "Uma Beretta modelo
B4 em mau estado. Duas mil liras".
Bem, quando vi Nemmo Carotunuto em cena, decidi permanecer no canal da RAI para ver no
que o filme iria dar. Em linhas gerais, foi uma decepção. O filme é
ruinzinho, salvo pela presença do
grande ator monicelliano e da
canção-tema, sensual, ao gosto
dos anos 60 de Roma, anos de "La
Dolce Vita".
E logo uma cena me fez pensar.
Nemmo Carotunuto, como sempre, faz o papel de um vigarista
especializado em golpes baixos. É
um mago, um "professore Mago",
adivinha o futuro dos clientes e
dá conselhos. O cenário é terrível,
como compete a uma chanchada:
além da indefectível bola de cristal, caveira, morcegos e símbolos
de magia negra estão espalhados
pela mesa em que ele recebe os
clientes.
Chega uma jovem, paga a consulta ao secretário e é admitida
ao sacrário onde o mago vive em
permanente concentração espiritual. A jovem senta-se, tímida,
envergonhada. Para encorajá-la,
o mago abre o leque do seu ofício,
oferecendo-lhe o cardápio de seus
serviços:
"Lavoro, salute o amore?" (trabalho, saúde ou amor?).
Congelei a imagem, nada mais
me interessou no filme, que, aliás,
pouco estava me interessando. Fiquei pensando na fulminante síntese da condição humana lançada de forma tão avacalhada.
Nem no teatro grego, que me custou anos de estudo no seminário,
nem em filósofos como Sócrates e
santo Agostinho, nem em poetas
como Shakespeare e John Donne,
nem nos pensadores que mais me
marcaram, Montaigne e Pascal,
em nenhum deles encontrei tão
breve e definitiva visão do Universo onde o homem, ao longo
dos séculos e enquanto for homem, encontrará os desafios de
sua condição e circunstância.
Toda a problemática que obriga o ser humano a apelar para as
forças superiores que acredita estarem guiando o seu destino fica
reduzida à pauta que o Mago Della Fontana (é o nome do personagem) propõe a quem o procura
para entender o passado, enfrentar o presente e preparar-se para
o futuro. Tudo isso pelo módico
preço de mil liras, que, na época,
deviam equivaler, em nossa moeda, a um real de hoje. (As notas de
mil liras eram depositadas numa
réplica da Fontana de Trevi, cafonérrima, que servia para dar nome ao mago, Mago della Fontana).
Trabalho, saúde e amor. Não há
problema que escape dos três cenários onde se desenrolam nossos
dramas, espantos e alucinações, a
vida de todos nós, independentemente de épocas, raças e países.
Queremos saber o que nos espera
no trabalho, na saúde e no amor.
O que pode variar é a ordem
das parcelas. Em determinados
momentos da trajetória, a saúde
pode ser mais importante do que
o trabalho e o amor. As prioridades se alternam, mas permanecem confinadas nos três nichos ou
ninhos onde colocamos nossos
ovos, esperando ver nascer deles o
pintinho de nossa esperança.
Mas, de uma forma ou outra, a
alternância das prioridades somos nós mesmos que a fazemos.
Diz o "Eclesiastes" que há tempo
para tudo, tempo para plantar e
para colher, tempo para rir e tempo para chorar.
Daí que haverá tempo em que o
amor será prioridade fundamental, justificando o fato de estarmos no mundo, mundo que também nos maltrata com problemas
de saúde e trabalho. Mas há momentos em que o trabalho, a obrigação de ganhar o pão de cada
dia sobe à "pole position"; de nada adiantam a saúde e o amor se
nossas relações profissionais estão
tumultuadas, incertas, frustrantes, criando mágoas ou depressões.
Finalmente a saúde. Feliz no
amor, bem-sucedido no trabalho,
se a saúde vai para o brejo, de nada valerão o amor correspondido,
o trabalho reconhecido e bem remunerado. Fora desses três escaninhos da condição humana, tudo o mais é redundante.
Antes que os clientes abrissem a
boca para se queixar dos patrões,
dos salários e dos colegas de repartição; antes de lamuriar as dores nas pernas ou nos intestinos;
antes de reclamar das traições,
desencontros e insídias da pessoa
amada -o Mago della Fontana,
como um maître de restaurante,
apresentava o insubstituível menu (trabalho, saúde e amor), pratos únicos servidos "à la carte",
preparados alternadamente na
complicada fornalha onde somos
cozinhados.
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