São Paulo, terça-feira, 19 de agosto de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Eu, o idiota


Os gregos admiravam a vida pública sobre qualquer outra. "Idiota" era quem discordava

SÓ UMA vida examinada vale a pena ser vivida? Os gregos, pela boca platônica (na "Apologia"), acreditavam que sim. Mas os gregos acreditavam em mais: acreditavam que a vida pública era marca suprema da excelência. Os homens podem ocupar-se dos seus assuntos pessoais e privados. Mas a recusa em votar, em discursar, em interessar-se pelos assuntos da cidade, revelava não apenas egoísmo ou ignorância. Essa recusa cobria o abstencionista com um manto de imoralidade e infâmia. Os gregos, aliás, tinham uma palavra bem expressiva para essas tribos: "idiotai". Não é difícil imaginar a evolução da palavra nos tempos futuros.
Foi o cristianismo que quebrou esse "absolutismo democrático" ao introduzir um espaço íntimo, pessoal, intransmissível, palco da minha consciência. A Deus o que é de Deus, a César o que é de César. Ou, por outras palavras, um ser humano não se define, apenas, pela vontade em participar nos destinos da cidade terrestre. Existe uma relação fundamental, e talvez superior, com os mandamentos da cidade celeste. Involuntariamente, o cristianismo promovia a liberdade individual ao apresentar aos homens não apenas um caminho, mas dois: o caminho público e o caminho privado.
Exatamente como Maquiavel escreveria mais tarde, ao demonstrar a incomensurabilidade das virtudes clássicas e das virtudes cristãs. Maquiavel inaugurou a modernidade política ao expressar, como nenhum outro autor antes dele, a colisão entre essas duas visões distintas.
Escusado será dizer que essa colisão continua bem viva na América Latina e, sobretudo, no Brasil. Razão simples: quando existe pleito eleitoral, o "voto obrigatório" volta a balançar sobre a pobre cabeça dos brasileiros. Nos últimos dias, e com amigos paulistanos em casa, as discussões foram fartas. E um deles, liberal em matéria de costumes (droga, aborto, eutanásia etc.), defendeu o "voto obrigatório" com argumentos de peso. Dizia ele que o "voto obrigatório" era necessário por motivos de educação política. É fácil defender o "voto facultativo" em democracias avançadas e consolidadas, como nos Estados Unidos e na Europa. Mas num país como o Brasil, em que a educação cívica é precária, a obrigatoriedade do voto exige que os cidadãos se interessem pelos assuntos públicos. O "voto facultativo" apenas conduziria ao desinteresse, à alienação e, no limite, à ruína das instituições democráticas.
O argumento não me convence. Para além das situações conhecidas em que o "voto obrigatório" permite a pressão e o suborno (os "votos de cabresto" de que falava Carlos Heitor Cony no último domingo), a idéia de que a obrigatoriedade é um mecanismo pedagógico revela um otimismo insensato. Pode ser um fator educativo, sim. Mas pode não ser: exigir que os cidadãos votem pode contribuir para que aumente uma certa náusea democrática.
E essa náusea é possível, e até provável, pela visão imoral que a sustenta: uma visão que, como na Grécia, entende que só a vida pública merece ser vivida. E que existe na participação política uma marca de excelência que não se encontra na vida privada.
A visão é retrógrada, no sentido preciso do termo. Porque é perfeitamente legítimo não votar, não discutir, não se interessar; é perfeitamente legítimo valorizar a vida privada acima de todas as outras; é perfeitamente legítimo repudiar a cidade e os seus representantes pela valorização de qualquer outra forma de existência. A liberdade pessoal não se define pelo destino que damos às nossas ações; ela começa por ser um espaço nosso, em que não existe a interferência intencional de terceiros. Um espaço no qual agimos, ou não agimos, como queremos e entendemos. O meu amigo concorda comigo até certo ponto, mas depois acrescenta que existe igualmente um problema de legitimidade: quando o voto é obrigatório, existe um reforço da legitimidade dos eleitos.
Talvez sim. Ou talvez não. Pessoalmente, creio que a verdadeira legitimidade de qualquer eleito só existe quando o voto foi uma opção pessoal do eleitor, não uma exigência do sistema. A autonomia valoriza o ato. Mas também valoriza, como Kant relembra, as conseqüências do ato.
Os gregos admiravam a vida pública sobre qualquer outra. E reservavam o rótulo de "idiotas" para quem discordava. Não é grave, leitores, não é grave. Ontem, como hoje, melhor ser "idiota" do que escravo.

jpcoutinho@folha.com.br



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