São Paulo, quinta-feira, 19 de agosto de 2010

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ANÁLISE

A ciência ainda não sabe como entrar no sonho de outra pessoa

SUZANA HERCULANO-HOUZEL
COLUNISTA DA FOLHA

No filme de Christopher Nolan, sonha-se imediatamente ao adormecer conectado a uma máquina.
O tempo sonhado é estendido em relação ao tempo real; há sonhos, sonhos dentro de sonhos e outros dentro desses, todos podendo ser compartilhados por cossonhadores, ligados à mesma máquina, e dos quais se acorda com uma "senha" musical e sensação de queda.
São recursos narrativos que fazem o roteiro funcionar, mas que pouco têm a ver com a realidade.
Desde 1953, quando foi descoberta a fase do sono chamada de REM (sigla em inglês para movimento rápido dos olhos), sabe-se que sonhos ricos em imagens são concentrados aí e não ocorrem logo ao adormecer.
Durante a noite, sonha-se várias vezes, em fases REM cada vez mais longas, que chegam a durar uma hora antes do despertar. O tempo passado em sono REM, contudo, é proporcional à extensão dos sonhos lembrados: ao contrário do tempo estendido no filme, uma história vivida, lembrada ou sonhada tem a mesma duração.
E não deveria ser diferente, já que hoje entendemos os sonhos como reativações de memórias iniciadas durante o dia, um palco de experimentação com o seu banco de dados pessoal.

IMPENETRÁVEIS
Estudos mostram que, durante os sonhos, as regiões de córtex associativo no cérebro, que participam das percepções sensoriais internas, são fortemente ativadas, juntamente a outras estruturas que dão o tom emocional às nossas vivências, de maneira semelhante a quando se imagina ou se lembra de experiências anteriores.
Ao contrário, as regiões sensoriais primárias, que recebem informação diretamente dos sentidos, ficam pouco ativas: durante os sonhos, o cérebro dá prioridade a processar informações internas, de maneira quase independente dos sentidos.
Por isso, e ao contrário do que ocorre no filme de Nolan, não é comum que os estímulos externos que acontecem durante o sono sejam incorporados aos sonhos.
É possível, claro, sonhar que se estava sonhando. Mas isso ocorre ao longo de um mesmo sonho: até onde se sabe, não há níveis diferentes de sono REM.
Existem drogas que facilitam ou dificultam a ocorrência de sono REM, mas não que o induzem diretamente.
E, mesmo que exames mostrem as partes do cérebro ativadas durante o sono, não é possível (ainda) saber com o que alguém sonhava.
Sonhos são pessoais, privados e praticamente impenetráveis; a única maneira de interferir no seu conteúdo é através das experiências vividas no estado acordado.


SUZANA HERCULANO-HOUZEL , neuro-cientista, é autora de "Pílulas de Neuro-ciência para uma Vida Melhor" (Sextante)


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