São Paulo, quarta-feira, 19 de setembro de 2001

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MARCELO COELHO

A lógica do extremismo e algumas obviedades fora de hora

Bombardear o Afeganistão certamente não vai acabar com o terrorismo internacional nem prevenir outros ataques contra os Estados Unidos. Isso é bastante óbvio, e foi mais ou menos o que disse uma deputada americana, Barbara Lee, há alguns dias.
Tudo indica, entretanto, que essa opinião é minoritária no momento. Barbara Lee ficou sozinha no Congresso. Foi a única que não quis autorizar o presidente Bush a usar força militar máxima em resposta aos atentados da semana passada. Foram 420 votos a um.
Claro que, depois de um ataque terrorista dessas dimensões, o espírito é mesmo de vingança, e há pouca gente disposta a raciocinar friamente sobre o que pode acontecer.
Ainda mais porque fica no ar a idéia de que "é preciso fazer alguma coisa". Essa frase sempre me assusta. Quando alguém simplesmente diz que "é preciso fazer alguma coisa", há 99% de probabilidade de que seja feita a coisa errada.
Não vou discorrer sobre geopolítica e assuntos estratégicos. Mas arrisco alguns comentários.
Todo mundo está dizendo que o Taleban ficou isolado. Afinal, o "mundo árabe" condenou quase unanimemente o atentado, e os Estados Unidos obtiveram apoio até mesmo de tradicionais inimigos seus.
Logo o tiro saiu pela culatra. Nunca os Estados Unidos estiveram tão fortes e coesos, e os extremistas, se tivessem pensado melhor (mas eles pensam? são capazes dessa atividade tão refinada, tão ocidental?), enfim, se tivessem pensado só um pouquinho, não teriam cometido o atentado.
Acho que não é bem assim. Especulo um pouco: veja-se o caso do Paquistão. Muito bem que o governo paquistanês declare seu apoio aos Estados Unidos e se disponha a caçar Bin Laden. Mas o que acha disso a população paquistanesa? É bem possível que muita gente considere o apoio aos EUA uma traição ao islamismo. E passe a apoiar o Taleban.
Não é claro que isso pode ocorrer em todo o mundo muçulmano? Suponho que em cada país árabe exista uma oposição ao governo. Se o governo se torna excessivamente pró-americano numa situação de guerra a um país árabe, é automática, a meu ver, a "talebanização" das oposições.
O sentido do atentado, a meu ver, é bem esse: expandir o Taleban por todos os países árabes.
O raciocínio é o mesmo no Ocidente e no islã. As autoridades americanas dizem: "Quem não está conosco está contra nós". Invocam-se os valores da civilização ocidental. Acho razoável imaginar que um "formador de opinião" muçulmano termine dizendo: "Quem apóia os Estados Unidos está contra nós e é um inimigo dos valores do islamismo".
Outro aspecto. Os Estados Unidos têm de comprar o apoio de todos os países da região. Mas há países rivais entre si. Será que os EUA, mesmo com seu imenso poder, têm condições de agradar ao Paquistão sem desagradar à Índia, por exemplo? Se todos estão a favor dos americanos, não vai ser difícil contentar a todos ao mesmo tempo?
Passada a comoção imediata em torno do atentado, é inevitável que algumas obviedades sejam lembradas. O poderio militar americano foi construído para lidar com países inimigos. Países são lugares. Podem ser encontrados no mapa e, consequentemente, podem ser bombardeados.
Contudo nenhum presidente americano até hoje teve a idéia de usar a bomba atômica contra a Máfia, por exemplo. Ouvi falar de planos para pôr fogo em todas as plantações de coca da América do Sul, mas pouca gente acredita que isso dê certo.
É evidente que, para cada Bin Laden que matarem, nascerão outros 200. Repito o que um amigo me disse há alguns dias. Quantos jovens radicais, em todo o Oriente Médio, não gostariam de ter feito um atentado desses? Não um atentado qualquer, mas o mais espetacular ataque jamais cometido contra os Estados Unidos. Bin Laden, ou seja lá quem for, provou que é possível fazer isso. Não haverá, nesses países, uma fila de gente para entrar na sua organização?
Parece até de mau gosto um raciocínio desses -coisa de radicais, de criptoxiitas. Criou-se um tal clima na opinião pública mundial que só a retaliação militar "faz sentido". É preciso que seja espetacular, cinematográfica, como o próprio atentado.
O mero registro jornalístico dos fatos vem carregado de "sentido", de emoção, de ideologia. "America under attack" e "America's New War", dizem os logotipos da CNN, com uma bandeirinha americana tremulando ao lado. Tudo se estetiza: as cenas de resgate se impregnam do heroísmo fotogênico e saudável dos tempos pré-Vietnã.
As imagens são reais, claro, não foram feitas de encomenda. Mas, escolhidas a dedo, correspondem a um ideal de americanidade há muito em desuso. Vêm substituir, depois de quase 40 anos, aquela foto da menina vietnamita chorando, nua, depois de um ataque de napalm.




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