|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Sem carro, sem multa, sem lei
Fico pensando se o Dia
Sem Carro não é algum
megaexperimento de
manipulação de massas
JÁ FORAM propostos o Dia Sem
Cigarro, o Dia Sem TV, o Dia
Sem Compras, e até o Dia Sem
Viagens de Avião. Como todo mundo, passei mais ou menos incólume
por esses... Ia dizer "eventos", mas
precisamente eis o que não são.
O certo seria chamá-los de "não-eventos", e há, sem dúvida, algum
encanto nisso. São os dias no estilo
de Bartleby, aquele escriturário
imaginado por Hermann Melville,
que a todas as ordens do patrão repete apenas uma mesma frase: "Preferia não fazê-lo".
Sabendo-se que estão em desaparecimento os conflitos trabalhistas
clássicos (greves, hoje em dia, parecem quase exclusividade dos serviços públicos), o instrumento de uma
paralisação temporária de atividades parece agora entregue aos caprichos, à consciência ou à pachorra do
cidadão-consumidor.
Chega agora, marcado para o próximo sábado, o Dia Mundial Sem
Carro. Bom protesto. Uma cidade
como São Paulo, para nada dizer
deste pobre planeta, é a demonstração flagrante de que automóveis são
coisa bem pior que o álcool e o tabaco; estes, ao menos, relaxam os nervos do usuário.
Será que vou aderir? Em tese, disponho de condições ideais para
exercer o meu civismo. Meus horários são confortáveis, moro num lugar mais ou menos perto de tudo,
não me arrependo quando faço alguma coisa a pé.
Numa caminhada, o aspecto da cidade muda; quem está acostumado
a prestar atenção apenas nos sinais
de trânsito e nas motos pode abrir-se ao acaso de uma fachada, de uma
cena, de um cheiro, de um caminho
inusual.
Pode também colocar em ordem
os pensamentos; há muita diferença, a meu ver, entre fazer isso sentado dentro do carro, condenado à
imobilidade tensa do tráfego, e ritmar as preocupações e devaneios
cotidianos com alguma atividade física, obtendo assim a ilusão de não
ser o espectador passivo da própria
vida.
O problema é que planejo todo dia
tomar pequenas iniciativas saudáveis (renunciar ao uso do elevador,
por exemplo), de que só me lembro
quando já é tarde demais.
A probabilidade de que eu esqueça
o Dia Sem Carro deve ser, portanto,
admitida honestamente. Tenho forte alergia, de resto, a mobilizações de
todo tipo. Admiro, com uma ponta
de desprezo também, as pessoas que
a respeito de qualquer "evento"
usam camisetas alusivas à causa ou
aos interesses que defendem. Já fui
a lançamentos de livro em que o autor usava uma camiseta especialmente feita para a ocasião, reproduzindo a capa de sua própria obra.
Para resumir, tenho a sensação de
ser um pouco otário se participar
desses Dias Sem Isto ou Aquilo, e ao
mesmo tempo sei que sou otário no
meu cotidiano, feito de Dias Com Isto e Mais Alguma Coisa.
"Compre!" "Gaste!" "Fume!" "Experimente a emoção de dirigir o novo Bastra, o novo Mengane, o novo
Numdai!" Ouvimos o dia inteiro essa ladainha.
Até que aparece uma nova ordem,
igualmente anônima na aparência, a
persuadir-nos do contrário. "Hoje,
não: hoje você não compra nada, não
gasta, não fuma, não voa, não dirige."
Fico pensando se não se trata de
algum megaexperimento de manipulação de massas, contando com a
ajuda das mesmas agências de propaganda e institutos de pesquisa que
nos monitoram diariamente.
Afinal, um Dia Sem Carro tende a
ser menos até do que um "protesto
pacífico", pois sabemos que a proposta não poderá ser generalizada
para os outros dias do ano; não chega a constituir um adversário político real, e para a maioria de nós nem
mesmo serve, imagino, para incentivar a uma mudança completa de
comportamento.
Sou dos que ainda manifestam
mais confiança nas decisões do poder público do que na boa vontade
das pessoas como eu. Minha visão
do "político", por mais antiquado
que isso possa parecer, tem dificuldades em dissociar-se da esfera do
Estado, e, se acredito na democracia
e na mobilização dos indivíduos,
creio que um dos seus objetivos
principais é desaguar em algum tipo
de legislação. Por que não fazer do
Dia Sem Carro uma forma de pressão pelo aumento do rodízio, pelo
pedágio urbano, por novas taxas
contra a emissão de poluentes?
A resposta, claro, é que muita gente prefere os idílios do escotismo a
tudo o que redundar em reforço nas
multas, nos impostos, na fiscalização e na burocracia. O Dia Sem Carro fica me parecendo, assim, o Dia de
Ser Bom Cidadão. Vinte e dois de setembro: espero não esquecer a data.
coelhofsp@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Artes Plásticas: Rodrigo Naves fala sobre Oswaldo Goeldi Índice
|