São Paulo, quarta-feira, 19 de setembro de 2007

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MARCELO COELHO

Sem carro, sem multa, sem lei

Fico pensando se o Dia Sem Carro não é algum megaexperimento de manipulação de massas

JÁ FORAM propostos o Dia Sem Cigarro, o Dia Sem TV, o Dia Sem Compras, e até o Dia Sem Viagens de Avião. Como todo mundo, passei mais ou menos incólume por esses... Ia dizer "eventos", mas precisamente eis o que não são.
O certo seria chamá-los de "não-eventos", e há, sem dúvida, algum encanto nisso. São os dias no estilo de Bartleby, aquele escriturário imaginado por Hermann Melville, que a todas as ordens do patrão repete apenas uma mesma frase: "Preferia não fazê-lo".
Sabendo-se que estão em desaparecimento os conflitos trabalhistas clássicos (greves, hoje em dia, parecem quase exclusividade dos serviços públicos), o instrumento de uma paralisação temporária de atividades parece agora entregue aos caprichos, à consciência ou à pachorra do cidadão-consumidor.
Chega agora, marcado para o próximo sábado, o Dia Mundial Sem Carro. Bom protesto. Uma cidade como São Paulo, para nada dizer deste pobre planeta, é a demonstração flagrante de que automóveis são coisa bem pior que o álcool e o tabaco; estes, ao menos, relaxam os nervos do usuário.
Será que vou aderir? Em tese, disponho de condições ideais para exercer o meu civismo. Meus horários são confortáveis, moro num lugar mais ou menos perto de tudo, não me arrependo quando faço alguma coisa a pé. Numa caminhada, o aspecto da cidade muda; quem está acostumado a prestar atenção apenas nos sinais de trânsito e nas motos pode abrir-se ao acaso de uma fachada, de uma cena, de um cheiro, de um caminho inusual.
Pode também colocar em ordem os pensamentos; há muita diferença, a meu ver, entre fazer isso sentado dentro do carro, condenado à imobilidade tensa do tráfego, e ritmar as preocupações e devaneios cotidianos com alguma atividade física, obtendo assim a ilusão de não ser o espectador passivo da própria vida.
O problema é que planejo todo dia tomar pequenas iniciativas saudáveis (renunciar ao uso do elevador, por exemplo), de que só me lembro quando já é tarde demais.
A probabilidade de que eu esqueça o Dia Sem Carro deve ser, portanto, admitida honestamente. Tenho forte alergia, de resto, a mobilizações de todo tipo. Admiro, com uma ponta de desprezo também, as pessoas que a respeito de qualquer "evento" usam camisetas alusivas à causa ou aos interesses que defendem. Já fui a lançamentos de livro em que o autor usava uma camiseta especialmente feita para a ocasião, reproduzindo a capa de sua própria obra.
Para resumir, tenho a sensação de ser um pouco otário se participar desses Dias Sem Isto ou Aquilo, e ao mesmo tempo sei que sou otário no meu cotidiano, feito de Dias Com Isto e Mais Alguma Coisa. "Compre!" "Gaste!" "Fume!" "Experimente a emoção de dirigir o novo Bastra, o novo Mengane, o novo Numdai!" Ouvimos o dia inteiro essa ladainha.
Até que aparece uma nova ordem, igualmente anônima na aparência, a persuadir-nos do contrário. "Hoje, não: hoje você não compra nada, não gasta, não fuma, não voa, não dirige."
Fico pensando se não se trata de algum megaexperimento de manipulação de massas, contando com a ajuda das mesmas agências de propaganda e institutos de pesquisa que nos monitoram diariamente.
Afinal, um Dia Sem Carro tende a ser menos até do que um "protesto pacífico", pois sabemos que a proposta não poderá ser generalizada para os outros dias do ano; não chega a constituir um adversário político real, e para a maioria de nós nem mesmo serve, imagino, para incentivar a uma mudança completa de comportamento.
Sou dos que ainda manifestam mais confiança nas decisões do poder público do que na boa vontade das pessoas como eu. Minha visão do "político", por mais antiquado que isso possa parecer, tem dificuldades em dissociar-se da esfera do Estado, e, se acredito na democracia e na mobilização dos indivíduos, creio que um dos seus objetivos principais é desaguar em algum tipo de legislação. Por que não fazer do Dia Sem Carro uma forma de pressão pelo aumento do rodízio, pelo pedágio urbano, por novas taxas contra a emissão de poluentes?
A resposta, claro, é que muita gente prefere os idílios do escotismo a tudo o que redundar em reforço nas multas, nos impostos, na fiscalização e na burocracia. O Dia Sem Carro fica me parecendo, assim, o Dia de Ser Bom Cidadão. Vinte e dois de setembro: espero não esquecer a data.


coelhofsp@uol.com.br

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