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RODAPÉ
Videoclipe de Ellis-Bextor tem refinamento cinematográfico raro
NELSON ASCHER
ARTICULISTA DA FOLHA, EM PARIS
"Get over you", o novo videoclipe da cantora pop Sophie Ellis-Bextor é o melhor a aparecer desde o "Can't Get You out of My
Head" de Kylie Minogue.
Este, um dos mais populares do
ano passado, não deixava de ser
convencional enquanto clipe, derivando seu sucesso do futurismo
retrô de uma coreografia que punha em evidência cada ângulo da
minúscula australiana.
Já o da londrina, um verdadeiro
salto desde seu recente "Murder
on the Dance Floor", exibe, ou até
mesmo ostenta, um refinamento
cinematográfico raro nesse universo, e isso talvez tenha a ver
com o fato de Ellis-Bextor, filha de
um produtor-diretor e de uma
apresentadora, ser hereditária ou
geneticamente do ramo.
A ação tem início numa rua comercial vazia, chuvosa e iluminada que evoca tanto o palco da sequência central de "Singin" in the
Rain", quanto a homenagem que
lhe fez Michael Jackson.
Passa-se em seguida para dentro de uma vitrine onde, vestido
de noiva, o manequim personificado pela cantora, irritando-se ao
ver seu noivo-boneco cedido à rival do lado, começa a se mover,
primeiro mecanicamente, como
em diversos episódios da antiga
série "Twilight Zone" ("Além da
Imaginação") ou como se fosse
um dos brinquedos de Steven
Spielberg, mas, mesmo assim, numa torção impossível do pescoço,
com ecos visuais que, inconfundivelmente demoníacos, remetem a
"O Exorcista" original.
A partir daí, o que se vê é uma
celebração do "Blade Runner"
("O Caçador de Andróides", de
1982, do diretor Ridley Scott), um
desses filmes que, não envelhecendo, transformam-se em referência obrigatória e repertório
inesgotável de citações.
Perto do final do filme, por
exemplo, a replicante Pris (Daryl
Hannah), entre os outros brinquedos de um Geppetto doentio e
solitário, disfarça-se de boneca
para se esconder do caçador Deckard (Harrison Ford).
Não passando de uma andróide, ela é de fato apenas um brinquedo que Deckard não sente remorsos em "desativar" até se convencer (como deveria ter ocorrido ao Dr. Victor Frankenstein) de
que os humanos são igualmente
fantoches engendrados por um
criador impotente.
Mas é a cena da morte da primeira andróide, Zhora (Joanna
Cassidy), que o clipe recria, só que
ao contrário.
Em "Blade Runner", conforme
Deckard a alveja pelas costas, a replicante em fuga se atira vitrine
adentro, agonizando então numa
orgia de vidro quebrado.
Ellis-Bextor, no entanto, tão logo se sente viva e após se livrar do
buquê, sai, explosivamente e espalhando cacos, vitrine afora.
Com esse ato, ela desperta os
manequins vizinhos que, pouco a
pouco, lançam-se numa espécie
de revolta das Barbies (somente
os bonecos femininos, abandonando os masculinos à imobilidade, tomam parte) e também saem
numa dança que lembra "O Mágico de Oz" ou "Robocop".
Embora, por ser morena à maneira das vilãs hollywoodianas
dos anos 40/50 e ter olhos fuzilantes, ela se assemelhe antes a uma
Barbie malvada cantando uma
canção que é um "poutpourri " de
velhos maneirismos e ritmos, Sophie se vale bem de seu aspecto e
encena sua desmecanização ou
naturalização progressiva com
humor peculiar.
Um quase manifesto feminista
assim, divertido e despido de rancor, é algo que não se vê desde os
tempos em que as militantes ainda eram capazes de formular slogans como "uma mulher precisa
de um homem assim como um
peixe de uma bicicleta".
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