São Paulo, sábado, 19 de outubro de 2002

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RODAPÉ

Videoclipe de Ellis-Bextor tem refinamento cinematográfico raro

NELSON ASCHER
ARTICULISTA DA FOLHA, EM PARIS

"Get over you", o novo videoclipe da cantora pop Sophie Ellis-Bextor é o melhor a aparecer desde o "Can't Get You out of My Head" de Kylie Minogue.
Este, um dos mais populares do ano passado, não deixava de ser convencional enquanto clipe, derivando seu sucesso do futurismo retrô de uma coreografia que punha em evidência cada ângulo da minúscula australiana.
Já o da londrina, um verdadeiro salto desde seu recente "Murder on the Dance Floor", exibe, ou até mesmo ostenta, um refinamento cinematográfico raro nesse universo, e isso talvez tenha a ver com o fato de Ellis-Bextor, filha de um produtor-diretor e de uma apresentadora, ser hereditária ou geneticamente do ramo.
A ação tem início numa rua comercial vazia, chuvosa e iluminada que evoca tanto o palco da sequência central de "Singin" in the Rain", quanto a homenagem que lhe fez Michael Jackson.
Passa-se em seguida para dentro de uma vitrine onde, vestido de noiva, o manequim personificado pela cantora, irritando-se ao ver seu noivo-boneco cedido à rival do lado, começa a se mover, primeiro mecanicamente, como em diversos episódios da antiga série "Twilight Zone" ("Além da Imaginação") ou como se fosse um dos brinquedos de Steven Spielberg, mas, mesmo assim, numa torção impossível do pescoço, com ecos visuais que, inconfundivelmente demoníacos, remetem a "O Exorcista" original.
A partir daí, o que se vê é uma celebração do "Blade Runner" ("O Caçador de Andróides", de 1982, do diretor Ridley Scott), um desses filmes que, não envelhecendo, transformam-se em referência obrigatória e repertório inesgotável de citações.
Perto do final do filme, por exemplo, a replicante Pris (Daryl Hannah), entre os outros brinquedos de um Geppetto doentio e solitário, disfarça-se de boneca para se esconder do caçador Deckard (Harrison Ford).
Não passando de uma andróide, ela é de fato apenas um brinquedo que Deckard não sente remorsos em "desativar" até se convencer (como deveria ter ocorrido ao Dr. Victor Frankenstein) de que os humanos são igualmente fantoches engendrados por um criador impotente.
Mas é a cena da morte da primeira andróide, Zhora (Joanna Cassidy), que o clipe recria, só que ao contrário.
Em "Blade Runner", conforme Deckard a alveja pelas costas, a replicante em fuga se atira vitrine adentro, agonizando então numa orgia de vidro quebrado.
Ellis-Bextor, no entanto, tão logo se sente viva e após se livrar do buquê, sai, explosivamente e espalhando cacos, vitrine afora.
Com esse ato, ela desperta os manequins vizinhos que, pouco a pouco, lançam-se numa espécie de revolta das Barbies (somente os bonecos femininos, abandonando os masculinos à imobilidade, tomam parte) e também saem numa dança que lembra "O Mágico de Oz" ou "Robocop".
Embora, por ser morena à maneira das vilãs hollywoodianas dos anos 40/50 e ter olhos fuzilantes, ela se assemelhe antes a uma Barbie malvada cantando uma canção que é um "poutpourri " de velhos maneirismos e ritmos, Sophie se vale bem de seu aspecto e encena sua desmecanização ou naturalização progressiva com humor peculiar.
Um quase manifesto feminista assim, divertido e despido de rancor, é algo que não se vê desde os tempos em que as militantes ainda eram capazes de formular slogans como "uma mulher precisa de um homem assim como um peixe de uma bicicleta".


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