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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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ANÁLISE

Diretor inaugurou momento reflexivo do cinema nacional

FERNÃO PESSOA RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Rogério Sganzerla foi, durante muitos anos, o "enfant terrible" da produção nacional. Com Bressane, Tonacci, Reichenbach, Jairo Ferreira, Neville, tomou nas mãos as rédeas do cinema brasileiro, em uma época (final dos anos 60) de opções radicais. Constituíram o que a crítica da época chamou de "cinema marginal", movimento que, em poucos anos, produziu um número significativo de longas, tão singulares quanto criativos.
"Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba." A frase, dita pelo Bandido da Luz Vermelha, protagonista do primeiro longa de Sganzerla, reflete o clima no qual o cinema marginal começa a filmar: fechamento político, repressão atingindo os cineastas, presença do novo contexto ideológico da contracultura (o lado "esculhambado" da história). De um lado, a opção pela luta armada, de outro, o píer de Ipanema, maconha e rock'n'roll.
Sganzerla é o líder dessa geração, comprando para si o conflito direto com os papas do cinema novo. Glauber percebe o desafio à ordem do pai (ou a do irmão mais velho) e estigmatiza o grupo como "udigrudi". Sintetizando o momento histórico, e radicalizando as inovações estilísticas abertas por "Terra em Transe" (66), "O Bandido da Luz Vermelha" (68) inaugura o sentimento do moderno no cinema brasileiro. Talvez não seja exagero dizer que é o primeiro momento reflexivo de nosso cinema, em que mostra densidade suficiente para olhar para trás e estilisticamente interagir com o que já foi cinema. Funda a sensibilidade que seria dominante no último quarto do século.
Sganzerla ainda radicaliza a estética de "O Bandido", dentro do viés mais debochado/cômico de "A Mulher de Todos" (1969).
Depois vem a Belair, sua antológica produtora, com Bressane. Em um trimestre, no início de 70, conseguem a façanha de realizar seis longas, algumas pequenas obras-primas, num esquema de produção familiar. "Sem Essa Aranha" merece destaque. A dimensão intertextual segue aflorando. No horizonte, a chanchada, gênero que o primeiro cinema novo nunca conseguiu digerir.
Depois veio o exílio, com filmes como "Carnaval na Lama", em Nova York, e o longa de 77, "Abismu" (já de retorno), em que a estilística marginal surge cristalizada, perdendo o frescor, mas não o interesse. E, depois, Orson Welles.
Sganzerla, como toda a geração 68, ressente-se dos novos tempos mais comedidos e tenta tomar pé. Welles fica no horizonte como acerto de contas necessário. A estética marginal, o avacalho estão atrás. Uma preocupação delicada com a brasilidade faz-se presente em seus filmes desse período. "Noel por Noel", "Isto É Noel" e o "Brasil" são o melhor exemplo.
Nos anos 80/90, Sganzerla faz tríptico sobre Welles ("Linguagem de Orson Welles", curta, "Nem Tudo É Verdade" e "Tudo É Brasil"). As relações entre a carreira e a obra de Welles mantêm vínculo evidente com a vida e a arte do diretor. O fim da trilogia, em 98, aparece como o fecho de um ciclo. Estamos agora curiosos para saber como sua personalidade forte se situará com relação aos novos tempos, onde a época que marcou o início de sua carreira está cada vez mais distante.


Fernão Pessoa Ramos é professor de cinema na Unicamp, autor de "Cinema Marginal (1968/1973): A Representação em Seu Limite" (Brasiliense)


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