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MARCELO COELHO
Sonhos agitados de um homem de bem
Os juristas que me perdoem,
mas, às vezes, eles recorrem
a argumentos tão abstratos e sublimes que o significado prático
do que dizem se perde de vista.
Acho que isso acontece no caso do
referendo.
Leio muitos adeptos do "não"
invocando o sagrado direito do cidadão à autodefesa. Mas será que
existe relação direta entre um
princípio constitucional abstrato e
o tema concreto da comercialização das armas e munições? Aparentemente, sim. Mas tento explorar um pouco os absurdos embutidos na tese.
A rigor, se eu tivesse de me defender para valer, um revólver e
uma caixa de balas seriam insuficientes. O crime organizado dispõe de metralhadoras, granadas,
armas exclusivas do Exército e tudo mais que o dinheiro pode comprar. Em nome do famoso princípio constitucional, armas de nenhum tipo deveriam ser proibidas.
Nem as atômicas. Só assim eu poderia de fato me defender das investidas de bandidos, de terroristas islâmicos, de potências estrangeiras ou dos impulsos liberticidas
do Estado contemporâneo; convenhamos que o governo brasileiro
não me deixa tranqüilo diante de
nenhum desses quatro cavaleiros
do apocalipse.
Imagino também que exista alguma lei ou portaria impedindo-me de criar tigres e onças dentro
de casa. Eu poderia alegar, entretanto, que se trata do meu direito
à defesa também. Que tal produtos químicos, como o gás mostarda ou o sarin? São modos de fazer
valer aquilo que está escrito na
Constituição.
Só que, com isso, nenhum Estado existiria. E, ainda que eu pudesse me sentir protegido, seria difícil considerar mais segura uma
sociedade em que eu desfrutasse
de tanta liberdade para comprar
tais aparatos de defesa individual.
Com esse exemplo extremo, quero dizer apenas que há uma diferença entre o princípio abstrato e
a questão colocada no referendo.
Não está escrito em nenhuma
Constituição, nem na Bíblia, nem
no genoma da espécie, que todo
ser humano tem direito a se defender de inimigos com balas de revólver calibre 38. Ou com metralhadoras. Está escrito, sim, que todo ser humano tem direito a se defender.
E o significado disso incide sobre
uma situação completamente diferente do que a imaginada pelos
adeptos do "não". O direito à legítima defesa, entendo eu, ocorre
em casos excepcionais. Serve para
absolver, não para permitir.
Imagino a história clássica. Ouço ruídos no quintal. Saio da cama, visto o meu velho chambre
grená, calço os chinelos de pelica e
vou ver o que se passa. Um garoto
de 18 anos aparece à minha frente
com uma semi-automática na
mão; outro surge do nada e me encosta um revólver na nuca. Estão
drogados. Querem dólares, querem me seqüestrar, nem sabem direito o que vão fazer. No prédio
em frente, alguém acende a luz e
põe a cara para fora da janela. O
pivete lança uma rajada de advertência. Mas, com isso, eles se distraíram. Tomo nas mãos o revólver que me encostaram na nuca e
-sou bom nisso- liqüido os dois
bandidos.
Muito bem, chamo a polícia e
conto o que ocorreu. É numa situação desse tipo que, acho eu, o
direito à legítima defesa pode ser
invocado. Cometi um homicídio,
ato bem mais grave do que comprar balas no mercado negro; mas
sou, claro, absolvido. É isso o que a
Constituição me garante: não ser
condenado num caso em que cometi um crime para me defender.
Para manter a comercialização
de armas, invoca-se um princípio
que vale em casos extremos, em situações concretas e irreversíveis
-isto é, quando o sangue já foi
derramado-, como se fosse um
preceito, um ideal, uma projeção
quanto ao futuro, quase um programa de governo.
Se fosse assim, se todo direito
consagrado na Constituição fosse
encarado em abstrato, nenhuma
lei, nenhuma regulamentação seria possível. Um usuário de ônibus
poderia considerar que o trajeto
utilizado limita o seu direito de ir
e vir, um camelô sem papéis em
ordem poderia defender o princípio do livre comércio, um plagiário poderia reclamar a liberdade
de imprensa. Em nome do direito
à propriedade privada, uma construtora poderia infringir a lei do
zoneamento; em nome do direito
à educação eu deixaria de pagar
mensalidades escolares; e, para
proteger-me dos assaltantes, eu
poderia colecionar morteiros e
lança-chamas dentro de casa.
Obviamente, não é assim que os
direitos funcionam. De todo modo, não vou a extremos. Abdico do
lança-chamas se me derem meu
revólver.
Afinal, sou um homem de bem.
Isto é, acho que sou. O termo anda
tão generalizado hoje em dia que
vai se constituindo numa espécie
de categoria mítica. Quem seria
esse "homem de bem" ou "cidadão de bem", tanto faz?
Imagino-o de suspensórios, bigode fino, brilhantina no cabelo,
pigarro na garganta. A Bíblia está
em cima da mesa para leituras
edificantes. O revólver está na gaveta para qualquer eventualidade. O cinto, no armário, para a
disciplina doméstica. O caderninho com o telefone da amante ele
deixou no escritório. Princípios,
princípios.
Estamos diante de uma personagem de Nelson Rodrigues. No
seu mundo tragicômico, todos
dão tiros e defendem seus princípios.
Mas querem acabar com o homem de bem. Castrá-lo de seu revólver. Na associação clássica, era
para o revólver ser um substituto
do pênis. Mas não: falamos de um
revólver hipotético, que quero ter
o direito de comprar um dia, para
matar agressores desconhecidos.
É um revólver mais imaginário
do que real. É uma coisa que se
guarda na gaveta do criado-mudo. É uma proteção. É uma espécie de garantia mágica de nossa
sobrevivência. É uma coisa que
não pode ficar na mão das crianças. Estranho, esse revólver: tem
todas as características de uma
camisinha.
O marido abre os olhos; teve sonhos agitados. Onde estão John
Wayne, os índios, o Fernandinho
Beira-Mar? A mulher pergunta se
está tudo bem. Ele diz que sim: vira de lado, começa a roncar. Dorme o sono dos justos. Que assim seja.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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