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NINA HORTA
Xô da minha cozinha!
Em carta, leitor da coluna se queixa de artigo que critica a presença do homem na cozinha
RECEBI UMA carta magoada do
leitor-cozinheiro Sérgio Corrêa, que se ofendeu com um
artigo da minha cara Anna Veronica
Mautner, no caderno Equilíbrio,
que, segundo ele, "menosprezava a
cozinha do macho". Como não li a
peça ofensiva, passo para ele a sua
defesa, com todo o prazer.
"Numa peça de "fashionable nonsense" uma cronista critica a moda
recente de homens na cozinha,
apesar de admitir que os cozinheiros profissionais são normalmente
homens. Os homens teriam se esgueirado na cozinha -reino feminino por excelência- recentemente, através da porta do churrasco.
No mínimo, uma meia verdade: os
homens começaram a cozinhar pelo churrasco, mas isso aconteceu
há algumas centenas de milhares
de anos, quando nós inventamos a
cozinha. Depois, as mulheres tentaram nos enxotar por umas meras
centenas de anos, mas isso é outra
história. E a cronista continua:
"Lembremos que a função feminina não desaparece: salada, arroz e
farofa continuam responsabilidade
das mulheres. São também elas
que põem a mesa e arrumam os
pratos".
Ora, se ela for comer o melhor
churrasco do Brasil, o gaúcho, o
acompanhamento deve ser arroz-de-carreteiro; em Minas, é provável que seja um feijão-tropeiro.
Nem o arroz é de carreteira nem o
feijão é de tropeira. São invenções
masculinas, como, aliás, é a paella,
prato feito pelos homens para as
mulheres -"para ellas". E o bacalhau à Gomes de Sá ou ao Zé do Pipo? Eu podia dar mais exemplos.
Bem mais.
E lá vem ela de novo: "A diferença, parece-me, reside no fato de
que eles não têm tradição familiar
de culinária, e elas têm. Na falta de
tradição, eles buscam livros e internet, mas não falam com a avó,
mesmo que ela tenha cozinhado a
vida inteira em fogão de lenha. É
raro homem querer aprender com
mulher. Prefere inventar a roda."
Bom, tenho ótimas recordações
de ex-namoradas, mas numa estatística otimista posso afirmar que
60% delas não sabia fritar um ovo,
85% não fazia um café e 95% não
conseguia cozinhar nada. Eram
profissionais urbanas, e o que eu
poderia aprender eram os telefones de disque-comida colados na
geladeira.
Aprendi a cozinhar por necessidade e minhas primeiras professoras foram mulheres. E sou herdeiro das tradições culinárias da minha família -e exclusivo de algumas-, pelo menos das mais complicadas. Com relação aos livros,
todos na família somos alfabetizados há algumas gerações. Sempre
os usamos.
Já que o meu sangue está esfriando, vamos a uma explicação
prosaica: o homem entrou na cozinha porque a mulher saiu dela. Cozinhar exige vocação e dedicação
-de homens ou mulheres. Se eu
não gostasse de cozinhar, jamais
entraria na cozinha depois de um
dia de trabalho. E para mulheres
que são profissionais urbanas é a
mesma coisa. A cozinha hoje ficou
para os aficionados, de qualquer
sexo. A tradição vai ficar morta e
enterrada se algum cozinheiro (a)
da família não quiser mantê-la,
porque o que mudou foi a estrutura familiar. E a grande herdeira de
tradições no Brasil nunca foi a dona-de-casa, mas a cozinheira -que
já se aposentou ou morreu.
Quanto aos utensílios de todos
os feitios, são típicos dos novatos.
Devo reconhecer que homem gosta mais de invenções. Por outro lado, quando deixa de usar o método
alemão, "Dê-me um manual de instruções e eu dominarei o mundo", e
passa a praticar o supremo método
francês do "au pif", "pelo cheiro",
aposenta os gadgets e usa a velha
faca, que é bem afiada se o cozinheiro é homem, e cega e cheia de
dentes quando a cozinheira comanda. No mais, ninguém tem culpa se o marido de algumas mulheres cozinha mal. Sugiro, sim, que
lugar de mulher é no consultório
ou no escritório."
Ai, ai, ai, não vá agora o leitor
ofender as mulheres que esses e-mails nunca mais terão fim. Briga
boa, esta! Briga de comida é sempre boa.
ninahorta@uol.com.br
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