São Paulo, quinta-feira, 19 de outubro de 2006

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NINA HORTA

Xô da minha cozinha!

Em carta, leitor da coluna se queixa de artigo que critica a presença do homem na cozinha

RECEBI UMA carta magoada do leitor-cozinheiro Sérgio Corrêa, que se ofendeu com um artigo da minha cara Anna Veronica Mautner, no caderno Equilíbrio, que, segundo ele, "menosprezava a cozinha do macho". Como não li a peça ofensiva, passo para ele a sua defesa, com todo o prazer.
"Numa peça de "fashionable nonsense" uma cronista critica a moda recente de homens na cozinha, apesar de admitir que os cozinheiros profissionais são normalmente homens. Os homens teriam se esgueirado na cozinha -reino feminino por excelência- recentemente, através da porta do churrasco.
No mínimo, uma meia verdade: os homens começaram a cozinhar pelo churrasco, mas isso aconteceu há algumas centenas de milhares de anos, quando nós inventamos a cozinha. Depois, as mulheres tentaram nos enxotar por umas meras centenas de anos, mas isso é outra história. E a cronista continua: "Lembremos que a função feminina não desaparece: salada, arroz e farofa continuam responsabilidade das mulheres. São também elas que põem a mesa e arrumam os pratos".
Ora, se ela for comer o melhor churrasco do Brasil, o gaúcho, o acompanhamento deve ser arroz-de-carreteiro; em Minas, é provável que seja um feijão-tropeiro.
Nem o arroz é de carreteira nem o feijão é de tropeira. São invenções masculinas, como, aliás, é a paella, prato feito pelos homens para as mulheres -"para ellas". E o bacalhau à Gomes de Sá ou ao Zé do Pipo? Eu podia dar mais exemplos.
Bem mais.
E lá vem ela de novo: "A diferença, parece-me, reside no fato de que eles não têm tradição familiar de culinária, e elas têm. Na falta de tradição, eles buscam livros e internet, mas não falam com a avó, mesmo que ela tenha cozinhado a vida inteira em fogão de lenha. É raro homem querer aprender com mulher. Prefere inventar a roda."
Bom, tenho ótimas recordações de ex-namoradas, mas numa estatística otimista posso afirmar que 60% delas não sabia fritar um ovo, 85% não fazia um café e 95% não conseguia cozinhar nada. Eram profissionais urbanas, e o que eu poderia aprender eram os telefones de disque-comida colados na geladeira.
Aprendi a cozinhar por necessidade e minhas primeiras professoras foram mulheres. E sou herdeiro das tradições culinárias da minha família -e exclusivo de algumas-, pelo menos das mais complicadas. Com relação aos livros, todos na família somos alfabetizados há algumas gerações. Sempre os usamos.
Já que o meu sangue está esfriando, vamos a uma explicação prosaica: o homem entrou na cozinha porque a mulher saiu dela. Cozinhar exige vocação e dedicação -de homens ou mulheres. Se eu não gostasse de cozinhar, jamais entraria na cozinha depois de um dia de trabalho. E para mulheres que são profissionais urbanas é a mesma coisa. A cozinha hoje ficou para os aficionados, de qualquer sexo. A tradição vai ficar morta e enterrada se algum cozinheiro (a) da família não quiser mantê-la, porque o que mudou foi a estrutura familiar. E a grande herdeira de tradições no Brasil nunca foi a dona-de-casa, mas a cozinheira -que já se aposentou ou morreu.
Quanto aos utensílios de todos os feitios, são típicos dos novatos. Devo reconhecer que homem gosta mais de invenções. Por outro lado, quando deixa de usar o método alemão, "Dê-me um manual de instruções e eu dominarei o mundo", e passa a praticar o supremo método francês do "au pif", "pelo cheiro", aposenta os gadgets e usa a velha faca, que é bem afiada se o cozinheiro é homem, e cega e cheia de dentes quando a cozinheira comanda. No mais, ninguém tem culpa se o marido de algumas mulheres cozinha mal. Sugiro, sim, que lugar de mulher é no consultório ou no escritório."
Ai, ai, ai, não vá agora o leitor ofender as mulheres que esses e-mails nunca mais terão fim. Briga boa, esta! Briga de comida é sempre boa.


ninahorta@uol.com.br

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