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CONTARDO CALLIGARIS
O Piauí é aqui
A condição básica de uma convivência democrática é que se goste da vida concreta
CHEGOU ÀS bancas o primeiro
número da revista "Piauí". Li
de cabo a rabo, numa noite.
Aprendi tudo sobre Salem, nossa
antepassada etíope de 3,3 milhões
de anos atrás. Acompanhei Roberto
Jefferson no dia das eleições e conheci o poema que, nessa ocasião,
ele declamou junto com o pai, Roberto Francisco.
Entendi que há uma luta entre as
baianas do candomblé e as neo-baianas, que vendem acarajé evangélico.
Soube dos comentários dos ex-presidiários do Carandiru sobre a morte do coronel Ubiratan.
Conheci Fernando Henrique
Freire, degustador de café; conheci
José Cândido Sobrinho, que, há vinte anos, defende seus direitos trabalhistas contra a massa falida dos
Diários Associados; soube que, no
Pará, há policiais militares que montam búfalos reluzentes.
Li uma grande reportagem sobre
como se trabalha (e por quanto) no
telemarketing; outra sobre o engenheiro brasileiro seqüestrado no
Iraque. Li o diário de uma jovem
imigrante "ilegal" em Nova York.
Soube o que fez e pensou o jornalista
Ivan Lessa, ao estar de volta ao Rio
de Janeiro, depois de 28 anos de ausência. Aprendi como vive e trabalha Guilherme Guimarães, o estilista das noivas, e como foi que um jornalista americano tornou famoso
um tal de Fidel Castro.
Soube também que Bertold
Brecht não era "flor que se cheire".
Li sobre o papagaio, animal nacional, sobre o turismo na Molvânia
(que não existe, mas poderia existir)
e sobre o hipopótamo. Também li
uma breve ficção de Rubem Fonseca.
Um leitor dirá: "Legal, você se divertiu à beça, mas, logo neste momento da vida nacional, cadê as coisas "sérias", cadê a política?". De fato,
a revista oferece um portfólio de fotografias de homens políticos, surpreendidos naqueles instantes em
que, por acaso ou por descaso, suas
máscaras vacilam.
Mas, para nosso leitor hipotético,
isso não bastará. Ele insistirá na sua
exigência, parecido com aqueles pacientes que, no consultório do terapeuta, sentem-se envergonhados ao
falar das "bobagens" de seu dia-a-dia, como se seu cotidiano concreto
não merecesse sua própria atenção e
ainda menos a atenção do terapeuta.
Ora, na "Piauí", não há editoriais
nem opiniões. Pela qualidade e pelo
charme dos textos, a "Piauí" rivaliza
com a "New Yorker", que a inspira.
Mas, embora eu seja um leitor inveterado da revista nova-iorquina, foi
lendo a "Piauí" que entendi a relevância secreta do "novo jornalismo": ela não está no "subjetivismo"
do repórter (que manifestaria seus
estados de ânimo), mas no interesse
pela vida concreta.
Não sei por que os colegas escolheram "Piauí" como título da revista, mas pensei o seguinte: não sei
quase nada do Piauí, sei apenas que a
capital é Teresina e acho o nome familiar e bonito (me faz pensar numa
mulher simpática e conversadeira).
Agora, graças à "Piauí", sei que, desde 2005, em Teresina, há adolescentes praticando o badminton. É uma
notícia sem importância? Não concordo, pela mesma razão pela qual
acho que a chegada da "Piauí" é um
evento político.
Os colegas da "Piauí", sem dúvida,
acharão essa afirmação bombástica
e retórica, mas fazer o quê? Aqui vai:
a curiosidade e o carinho pelo cotidiano são os alicerces de qualquer
política que não seja só vociferação.
A condição básica de uma convivência democrática é que se torne relevante a variedade das vidas concretas, que são nosso Piauí, nossas terras desconhecidas ou silenciadas.
A "Piauí" nos traz esse Piauí, pelo
Brasil afora.
Considere "As Torres Gêmeas",
de Oliver Stone. Alguns desdenharam o filme porque esperavam algo
diferente: interpretações, quem sabe conspiratórias, dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 ou
meditações sobre a perfídia da Al-Qaeda ou do atual governo dos EUA,
tanto faz.
Ora, Stone contou a história de
dois policiais enterrados nos escombros e da espera de suas famílias. Ele
chamou isso de "As Torres Gêmeas", como se, naquele evento que
alterou a cara do mundo, os fatos
mais importantes fossem duas vidas
concretas, duas vidas que, em geral,
ninguém vê. Essa é a grandeza do filme.
"A Vida que Ninguém Vê" (editora
Arquipélago), aliás, é o título de um
livro imperdível de Eliane Brum,
jornalista (hoje, da revista "Época").
É uma coletânea de relatos da vida
cotidiana e miúda, escritos em 1999,
para o jornal "Zero Hora". Eliane
Brum é uma extraordinária repórter
do Piauí de todos os dias.
ccalligari@uol.com.br
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