|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
31ª Mostra de SP
Crítica/"Império dos Sonhos"
Lynch cria experiência sensorial única
Cineasta de "Veludo Azul" cria obra radical que tem enredo baseado em uma atriz, um papel importante e um filme maldito
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
A luz de um projetor (de
cinema?) ilumina as letras que compõem o título original, "Inland Empire".
Em close, a agulha de um velho
gramofone desliza na superfície de um disco e emite ruídos.
As duas primeiras imagens
de "Império dos Sonhos",
aguardadíssimo novo filme de
David Lynch, oferecem as pistas que servirão de guia para o
espectador. Esqueça o sentido
obtido por meio de uma história sujeita a interpretações intelectuais. O que se impõe ao
longo das três horas de duração
do filme é outro sentido, ou melhor, provém dos sentidos, entendidos como portas sensoriais. Pois neste "Império..." os
significados pouco importam.
Trata-se de uma experiência e,
para alcançá-la, basta se deixar
conduzir pelas sensações.
Em "Cidade dos Sonhos", filme anterior do diretor, ainda
persistia um fio de história,
uma forma de sedução de base
realista que o perverso Lynch
usava para atrair incautos para
dentro de seu labirinto. Uma
vez embarcados, ele nos fazia
nos perder progressivamente
num relato que embaralhava os
múltiplos planos (realidade?
fantasia? sonho? delírio?), modo de reafirmar o quanto há de
idiota na idéia de entrar numa
ficção com a mesma confiança
que utilizamos na realidade.
Muita gente perdeu tempo
construindo hipóteses que pretendiam esclarecer aquele labirinto, lançar uma luz racional
dentro dele, em suma, arrancar
dali a aura do mistério.
Fiapo de trama
O que Lynch propõe em "Império dos Sonhos" é muito mais
radical. Nem mesmo um fiapo
de trama chega a adquirir consistência. No início sabemos
que se trata de uma atriz, de um
papel importante e de um filme
maldito. Por quanto tempo essas balizas permanecem fixas
nunca se chega a ter certeza.
A palavra "sonho" (repetida
nos títulos brasileiros dos dois
últimos filmes do diretor) poderia oferecer a chave para a
compreensão, mas trata-se de
uma saída fácil demais, quase
um clichê.
Que as formas de associação
das imagens e situações de
"Império dos Sonhos" podem
ser interpretadas com a ajuda
dos conceitos freudianos como
"deslocamento", "condensação", "figurabilidade", não há
dúvida. E os psicanalistas poderão se debruçar infinitamente
sobre tantas sugestões.
Para o espectador não-tecnico, contudo, o prazer que
Lynch oferece é, repito, de ordem sensorial (e, neste sentido
sim, equivalente a um sonho).
Ele provém não do sentido da
história, mas da experiência
dos sentidos. Daí a ênfase, na
abertura, na imagem e no som.
Existem planos visuais e planos
auditivos ao longo de todo o filme. Lynch assina não só a direção como também o "sound design" da obra.
Senhor dessas duas instâncias, ele remete uma à outra, as
sobrepõe garantindo a autonomia de ambas, intensificando
desse modo a impressão de labirinto sensorial.
Adeus ao passado
É como se Lynch pretendesse romper com toda a história
anterior do cinema, eterna devedora do relato no sentido literário, e restituísse o que lhe é
de direito: o território das imagens (visuais e auditivas). Desse modo, as imagens se comunicam com imagens, os sentidos se conectam com sentidos,
alcançando o ápice daquilo que
chamamos "audiovisual".
IMPÉRIO DOS SONHOS
Direção: David Lynch
Com: Laura Dern, Jeremy Irons
Quando: hoje, às 22h50, no iG Cine;
dom., às 12h, no Cine Bombril; seg.,
às 20h10, no Unibanco Arteplex
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Por que ouvir Próximo Texto: Diretor fez "Império" para Laura Dern Índice
|