São Paulo, sexta-feira, 19 de outubro de 2007

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31ª Mostra de SP

Crítica/"Império dos Sonhos"

Lynch cria experiência sensorial única

Cineasta de "Veludo Azul" cria obra radical que tem enredo baseado em uma atriz, um papel importante e um filme maldito

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

A luz de um projetor (de cinema?) ilumina as letras que compõem o título original, "Inland Empire". Em close, a agulha de um velho gramofone desliza na superfície de um disco e emite ruídos. As duas primeiras imagens de "Império dos Sonhos", aguardadíssimo novo filme de David Lynch, oferecem as pistas que servirão de guia para o espectador. Esqueça o sentido obtido por meio de uma história sujeita a interpretações intelectuais. O que se impõe ao longo das três horas de duração do filme é outro sentido, ou melhor, provém dos sentidos, entendidos como portas sensoriais. Pois neste "Império..." os significados pouco importam.
Trata-se de uma experiência e, para alcançá-la, basta se deixar conduzir pelas sensações. Em "Cidade dos Sonhos", filme anterior do diretor, ainda persistia um fio de história, uma forma de sedução de base realista que o perverso Lynch usava para atrair incautos para dentro de seu labirinto. Uma vez embarcados, ele nos fazia nos perder progressivamente num relato que embaralhava os múltiplos planos (realidade? fantasia? sonho? delírio?), modo de reafirmar o quanto há de idiota na idéia de entrar numa ficção com a mesma confiança que utilizamos na realidade.
Muita gente perdeu tempo construindo hipóteses que pretendiam esclarecer aquele labirinto, lançar uma luz racional dentro dele, em suma, arrancar dali a aura do mistério.

Fiapo de trama
O que Lynch propõe em "Império dos Sonhos" é muito mais radical. Nem mesmo um fiapo de trama chega a adquirir consistência. No início sabemos que se trata de uma atriz, de um papel importante e de um filme maldito. Por quanto tempo essas balizas permanecem fixas nunca se chega a ter certeza.
A palavra "sonho" (repetida nos títulos brasileiros dos dois últimos filmes do diretor) poderia oferecer a chave para a compreensão, mas trata-se de uma saída fácil demais, quase um clichê.
Que as formas de associação das imagens e situações de "Império dos Sonhos" podem ser interpretadas com a ajuda dos conceitos freudianos como "deslocamento", "condensação", "figurabilidade", não há dúvida. E os psicanalistas poderão se debruçar infinitamente sobre tantas sugestões.
Para o espectador não-tecnico, contudo, o prazer que Lynch oferece é, repito, de ordem sensorial (e, neste sentido sim, equivalente a um sonho).
Ele provém não do sentido da história, mas da experiência dos sentidos. Daí a ênfase, na abertura, na imagem e no som.
Existem planos visuais e planos auditivos ao longo de todo o filme. Lynch assina não só a direção como também o "sound design" da obra. Senhor dessas duas instâncias, ele remete uma à outra, as sobrepõe garantindo a autonomia de ambas, intensificando desse modo a impressão de labirinto sensorial.

Adeus ao passado
É como se Lynch pretendesse romper com toda a história anterior do cinema, eterna devedora do relato no sentido literário, e restituísse o que lhe é de direito: o território das imagens (visuais e auditivas). Desse modo, as imagens se comunicam com imagens, os sentidos se conectam com sentidos, alcançando o ápice daquilo que chamamos "audiovisual".


IMPÉRIO DOS SONHOS
Direção:
David Lynch
Com: Laura Dern, Jeremy Irons
Quando: hoje, às 22h50, no iG Cine; dom., às 12h, no Cine Bombril; seg., às 20h10, no Unibanco Arteplex
Avaliação: ótimo


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