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Alô, Antonio Me Abraça, aquele abraço
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
²
Outro dia vi uma entrevista
de Pierre Weill, o psicólogo
que se dedica ao movimento
pela paz. Ele disse que o Brasil
tinha um grande produto de
exportação, ao qual não dava
muito valor: o abraço.
De fato, o abraço brasileiro é
sempre muito comentado por
europeus e norte-americanos.
Lembro-me de uma foto de
Elizabeth Bishop com um poeta norte-americano no Brasil,
creio que era Robert Lowell, e a
legenda falava exatamente da
dificuldade de se tocarem com
naturalidade.
No momento em que se encerra a campanha eleitoral de
98, talvez fosse bom dar um
balanço nesse velho hábito
brasileiro, celebrizado na canção de Gil quando partiu para
o exílio: "Aquele Abraço".
O espírito da canção era irônico, mas o título pressupunha
a existência de diferentes tipos
de abraço, aquele era o melhor, o especial. A simples possibilidade de falar sobre muitos tipos de abraço já indica a
popularidade desse gesto no
Brasil.
Na minha terra, havia um
homem chamado Antonio Me
Abraça. Dizem que entrou
num bookmaker onde se irradiava uma corrida de cavalo e
gritou, ao ver que que seu cavalo preferido mantinha vários corpos luz de vantagem:
"Só perde se quebrar a perna".
Pois bem, o cavalo quebrou a
perna e foi sacrificado.
Durante muitos anos tentei
entender aquele nome. Antonio Me Abraça seria uma invocação de azar ou a própria
idéia de ser abraçado por ele
funcionaria como um antídoto? Hoje ele virou líder da igreja carismática e constrói heroicamente abrigo para idosos
e pobres.
Quando vejo notícias de acidente com velhinhos, vem um
certo sobressalto. Tudo indica
que Me Abraça virou um homem de sorte e seu gesto acolhedor e envolvente tem melhorado a vida de dezenas de
pessoas.
A maneira como as eleições
são feitas, com predomínio da
televisão, enfraqueceu um
pouco a prática do abraço.
Mesmo assim, no Rio, há cursos para políticos de cintura
dura.
Um deles chegou até a teorizar sobre a importância do
abraço redondo no processo
eleitoral. A professora insistiu
que o abraço tinha de envolver
a pessoa, que os braços precisavam se cruzar atrás, para
que ela se sentisse protegida e
realmente abraçada.
Hoje, o candidato só dá
abraços redondos, embora
ainda deva ter muito a aprender na arte de abraçar. Seu
aprendizado pode estagnar
porque o contato com eleitores
é cada vez menor. Num dia intenso, consegue falar com mil
pessoas. Tem chovido muito e,
numa campanha de dois meses, vamos supor que abrace 60
mil. É pouco para quem disputa milhões de votos.
O abraço, que, para Pierre
Weill, é um grande produto
brasileiro, está lentamente
sendo ameaçado, não apenas
no processo eleitoral, mas no
próprio cotidiano do país. Ashley Montagu, num livro sobre
o significado humano da pele,
fala de culturas caracterizadas
pelo noli mi tangere (não me
toque). Não foi o nosso caso.
Mesmo as culturas do "me
abraça" acabam sendo influenciadas pelo desenvolvimento tecnológico. Montagu
acha que consideramos a pele
algo que caiu do céu e só tomamos conhecimento de suas
qualidades (flexibilidade, textura) quando envelhecemos e,
mais ainda, quando ela revela
os sinais públicos de decadência física. Talvez o mesmo
aconteca com o abraço. Quando começar a escassear, aí então pode ser tarde.
Lembro-me de uma campanha de loja de departamento
na Suécia. As sacolas de plásticos continham a frase: "Toquem uns nos outros, abracem...". Foi há tanto tempo,
nem pude verificar o sucesso
da campanha. Com a mudança de estação, as sacolas mudaram de tema.
Aquele abraço, no sentido de
tchau, partimos para outra.
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