São Paulo, segunda, 19 de outubro de 1998

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Alô, Antonio Me Abraça, aquele abraço

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha ² Outro dia vi uma entrevista de Pierre Weill, o psicólogo que se dedica ao movimento pela paz. Ele disse que o Brasil tinha um grande produto de exportação, ao qual não dava muito valor: o abraço.
De fato, o abraço brasileiro é sempre muito comentado por europeus e norte-americanos. Lembro-me de uma foto de Elizabeth Bishop com um poeta norte-americano no Brasil, creio que era Robert Lowell, e a legenda falava exatamente da dificuldade de se tocarem com naturalidade.
No momento em que se encerra a campanha eleitoral de 98, talvez fosse bom dar um balanço nesse velho hábito brasileiro, celebrizado na canção de Gil quando partiu para o exílio: "Aquele Abraço".
O espírito da canção era irônico, mas o título pressupunha a existência de diferentes tipos de abraço, aquele era o melhor, o especial. A simples possibilidade de falar sobre muitos tipos de abraço já indica a popularidade desse gesto no Brasil.
Na minha terra, havia um homem chamado Antonio Me Abraça. Dizem que entrou num bookmaker onde se irradiava uma corrida de cavalo e gritou, ao ver que que seu cavalo preferido mantinha vários corpos luz de vantagem: "Só perde se quebrar a perna". Pois bem, o cavalo quebrou a perna e foi sacrificado.
Durante muitos anos tentei entender aquele nome. Antonio Me Abraça seria uma invocação de azar ou a própria idéia de ser abraçado por ele funcionaria como um antídoto? Hoje ele virou líder da igreja carismática e constrói heroicamente abrigo para idosos e pobres.
Quando vejo notícias de acidente com velhinhos, vem um certo sobressalto. Tudo indica que Me Abraça virou um homem de sorte e seu gesto acolhedor e envolvente tem melhorado a vida de dezenas de pessoas.
A maneira como as eleições são feitas, com predomínio da televisão, enfraqueceu um pouco a prática do abraço. Mesmo assim, no Rio, há cursos para políticos de cintura dura.
Um deles chegou até a teorizar sobre a importância do abraço redondo no processo eleitoral. A professora insistiu que o abraço tinha de envolver a pessoa, que os braços precisavam se cruzar atrás, para que ela se sentisse protegida e realmente abraçada.
Hoje, o candidato só dá abraços redondos, embora ainda deva ter muito a aprender na arte de abraçar. Seu aprendizado pode estagnar porque o contato com eleitores é cada vez menor. Num dia intenso, consegue falar com mil pessoas. Tem chovido muito e, numa campanha de dois meses, vamos supor que abrace 60 mil. É pouco para quem disputa milhões de votos.
O abraço, que, para Pierre Weill, é um grande produto brasileiro, está lentamente sendo ameaçado, não apenas no processo eleitoral, mas no próprio cotidiano do país. Ashley Montagu, num livro sobre o significado humano da pele, fala de culturas caracterizadas pelo noli mi tangere (não me toque). Não foi o nosso caso.
Mesmo as culturas do "me abraça" acabam sendo influenciadas pelo desenvolvimento tecnológico. Montagu acha que consideramos a pele algo que caiu do céu e só tomamos conhecimento de suas qualidades (flexibilidade, textura) quando envelhecemos e, mais ainda, quando ela revela os sinais públicos de decadência física. Talvez o mesmo aconteca com o abraço. Quando começar a escassear, aí então pode ser tarde.
Lembro-me de uma campanha de loja de departamento na Suécia. As sacolas de plásticos continham a frase: "Toquem uns nos outros, abracem...". Foi há tanto tempo, nem pude verificar o sucesso da campanha. Com a mudança de estação, as sacolas mudaram de tema.
Aquele abraço, no sentido de tchau, partimos para outra.



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