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MARCELO COELHO
Um debate irreal
Diante do horrível, fazemos tudo para desviar o
nosso olhar. Aconteceu isso depois do assassinato dos namorados Felipe Caffé e Liana Friedenbach. Segundo a polícia, a quadrilha responsável por esse crime
tem como líder um rapaz de 16
anos. Todas as atenções logo se
voltaram para um debate relativamente secundário -o da
maioridade penal-, uma vez
que o fato em si parece suspender
nossa capacidade de reação.
O abalo experimentado pela
opinião pública não se deve simplesmente ao fato de que as vítimas eram de classe média ou
média alta. Eis um clichê bastante impiedoso, aliás: "Na periferia, jovens são assassinados aos
montes e ninguém liga...". Correto. Mas, se a tragédia acontece
com pessoas mais próximas de
nós, é natural que a comoção seja maior.
Há outra coisa em jogo. Os dois
jovens não foram mortos na saída do colégio ou num assalto comum. Estavam vivendo uma
aventura romântica, uma experiência quase mitológica, ou melhor, arquetípica: o namoro escondido dos pais, a fuga para
uma pequena cabana na floresta, a intrepidez com que ignoraram as advertências dos mais velhos... tudo estava planejado para ser um conto de fadas.
A poucos quilômetros de São
Paulo, existiria uma espécie de
bosque encantado, ao alcance
dos adolescentes que conhecessem o caminho; mas o assassinato de Liana e Felipe veio destruir
essa construção idílica, que retrospectivamente compartilhávamos com eles enquanto líamos
a notícia nos jornais. Nenhum
esconderijo na mata: aqueles que
quiserem sair de uma cidade dura, feia e inabitável encontrarão
apenas... a periferia, com sua
realidade de pobreza e violência
e seus menores infratores.
A idéia de reduzir para 16 anos
a maioridade penal talvez tenha,
assim, um significado oculto -o
de que passou o tempo dos contos de fadas, das histórias românticas, e que cabe agora encarar a dura realidade.
Mas é o próprio debate que me
parece, no fundo, bastante irreal.
Vi o ministro da Justiça na TV,
pronunciando-se terminantemente contra a mudança da lei.
Jogar um garoto de 16 anos na
prisão seria selar o seu destino
para sempre: sabemos que os estabelecimentos penais são verdadeiras escolas de crime...
Que o próprio ministro da Justiça aponte a falência do sistema
carcerário não tem nada de espantoso. Márcio Thomaz Bastos,
advogado esclarecido e liberal,
sempre denunciou esses híbridos
de campos de concentração e
quartéis-generais do crime organizado que a estupidez do poder
público espalhou pelo território
brasileiro.
O espantoso é achar que, deixando o garoto na Febem, seu
destino vá ser diferente. Metido
numa instituição em estado tão
falimentar quanto qualquer presídio, o "menor infrator" há de
ter mínimas chances de recuperação. Trata-se, na verdade, de
outro problema: quanto tempo
se consegue deixar o assassino
entre as grades -pouco ou nada
sendo feito (todos sabemos disso)
para "reabilitá-lo para o convívio social".
Quanto eufemismo! A solução
proposta pelo governador Alckmin vai nessa direção. Deixa-se o
garoto na Febem, ou que nome
tenha, Carandiru, Gulag, Auschwitz, Birkenau. Mas por mais
tempo! O importante é que não
volte às ruas quando fizer 18
anos.
Um aspecto curioso nesse debate é que algumas autoridades
parecem mais preocupadas com
a incapacidade do sistema prisional do que com a segurança
pública propriamente dita. "Menores de 18 nas cadeias? Mas se
aqui já está tudo lotado!" Nos últimos anos, o problema da segurança está se resumindo à necessidade que o Estado tem de proteger a si mesmo (com as delegacias e os policiais sendo atacados
por bandidos), mais do que a de
proteger os cidadãos. Estes,
quando podem, protegem-se por
conta própria, em condomínios
fechados e com vigias e sistemas
de segurança independentes.
Quando vejo as operações da
polícia em favelas do Rio, o paralelo que se impõe é com as ações
de Israel sobre os acampamentos
palestinos. Não faltará muito para que joguemos mísseis em alguns barracos onde supostamente
estariam escondidos os traficantes e mandatários de atentados.
Se crianças e velhos morrem na
operação, tanto melhor. Alguém
já disse que, no Brasil, a classe
média e a classe alta se acostumaram a pensar nos pobres como lixo. No mínimo, um obstáculo,
um incômodo, uma atrapalhação
-estaríamos em plena Bélgica se
eliminássemos a Índia.
O raciocínio foi mais ou menos
explicitamente ventilado durante
os anos FHC. Nos anos Lula, o tema do lixo volta à baila, em registro doméstico, decorativo e intimista. Refiro-me aos cestos de lixo
"em madeira freijó" -como se
diz- ao custo de R$ 476 a peça,
que estão sendo comprados para
os gabinetes do Planalto.
Muitos se escandalizaram com
o preço. Mas, para saber se é caro
mesmo, teríamos de conhecer as
dimensões de cada cesto. Talvez
sejam enormes: há muita coisa
-planos, programas, discursos,
idéias, compromissos, papelada
inútil- que este governo trata de
jogar no lixo. O cesto vai ficar tão
abarrotado quanto uma cela da
Febem.
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