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CARLOS HEITOR CONY
Cena de Betinha com o homem enorme
Era uma vez uma menina
chamada Betinha. Bem, o
começo não seria exatamente assim. Em criança, nas poucas vezes
em que o pai a repreendia por alguma falta, ouvia num sotaque
carregado:
- Berthe!
Mais tarde, quando entrou para o teatro, o nome fixou-se naquele: Betinha. Quase ao mesmo
tempo em que o pai ficaria fixado
em sua saudade. Parecia ontem
ou não parecia nunca.
Fazia o segundo ano da Escola
de Danças, costumava sair ao
meio-dia. Um dos empregados do
pai vinha esperá-la. Em raras vezes, o pai. Naquele dia, 22 de dezembro, proximidade do Natal, o
pai lá estava, no terno surrado, o
velho livro sempre nas mãos, "eu
fui o maior livreiro de Berlim".
Ela olhou para o beco e viu o vulto enorme, vermelho e triste.
- Alguma coisa, pai?
- Não.
E, depois de uma pausa que era
sinal de hesitação, uma hesitação
que nele era rara:
- Vamos almoçar.
Betinha caminhou ao lado daquele homem malvestido, desajeitado em suas enormes passadas.
Ao lado dele, ficava pequenina e,
por mais que se esforçasse, desajeitada também. Tomou coragem, não queria magoá-lo, ele
não merecia isso:
- Pai, quando o senhor vier me
buscar, deve botar um terno melhor. As colegas reparam nessas
coisas, depois zombam de mim.
- Pode ficar descansada. Tomarei cuidado, realmente, me
vesti hoje com pressa, muito trabalho na loja...
Dirigiram-se à rua do Rosário,
onde funcionava o melhor restaurante alemão da cidade, cujo dono era seu amigo. À hora do almoço, ficava cheio. Ali, poucos
freqüentadores não eram alemães. A presença do pai era notada nas mesas, olhavam-no com
respeito. O pai explicava: "Eles sabem que eu fui o maior livreiro de
Berlim, tinha a melhor livraria,
Thomas Mann ia sempre lá".
Comiam coisas típicas, salsichões obesos, com salada de repolho, canecões de cerveja com caras de frades, rindo, em relevo.
Naquele dia, o pai permanecia silencioso e, embora fosse sempre
um homem silencioso, o seu silêncio, agora, era mais denso e triste.
- Pai, por que o senhor está
triste hoje?
Ele olhou a filha com espanto:
- Hoje?
- Sim, hoje.
O pai abaixara a cabeça. Quando perguntara "hoje?", talvez desejasse perguntar "triste?".
- Amanhã faço 65 anos. E não
estou triste, nem hoje, nem nunca. Sou calado, mas isso é outra
coisa.
Betinha tinha 14 ou 15 anos,
não pensou mais naquele diálogo. Sabia que o pai faria anos, já
comprara um presente para ele,
comeu uma torta de maçã com
creme, especialidade da casa. O
pai carregou no creme e, depois
da sobremesa, bebeu, de um gole
só, um enorme caneco de cerveja.
Ela reparou o pai: tudo o que
saía daquele homem era enorme,
enorme, calmo e triste.
- Bem, estou na hora, tenho
ensaio à tarde.
O pai limpou a boca com o
guardanapo e levantou-se. Ela,
sem querer, enfrentou aquele
olhar azul que a cerveja desmanchara um pouco, tornando-o
avermelhado nos cantos.
- O senhor me leva?
- Levo.
Caminharam em silêncio pela
cidade, esbarraram em muita
gente, algumas pessoas reparavam naquele curioso par que andava em largas e enormes passadas -ao lado dele, ela insensivelmente acompanhava o jeito dele
de caminhar.
- Bem, chegamos.
- Sim, chegamos.
Betinha beijou o pai. Subiu correndo as escadas que levavam ao
palco. Ouviu o piano, alguém tocava um trecho do ensaio, a mazurca do primeiro ato de "Gisele".
Também ela gostaria de repassar
aquela dança alegre, as camponesas com fitas vermelhas nos cabelos. Quando atingiu o segundo
lance de escadas, onde havia um
pequeno corredor que dava para
a rua, olhou pela janela: viu o vulto enorme, na calçada, acenando-lhe com a mão enorme. Ficava solene naquele gesto, deixava de ser
desajeitado. Parecia um general
coberto de glórias e de cansaços,
saudando uma tropa imaginária.
Ela subiu o segundo lance das
escadas. Se ainda tivesse mais
tempo, desceria de novo, voltaria
correndo para aquele homem e o
abraçaria e o beijaria.
Tal como o abraçou e beijou,
horas mais tarde, quando o corpo
dele foi retirado do mar, ali na
praça Quinze, e jogado no cais, à
espera do carro que o levaria ao
necrotério. Betinha então não teve vergonha de ser filha daquele
homem enorme, que parecia mais
enorme agora, estirado no cais.
Ela se ajoelhou, colou-se ao rosto
dele. Chorou um choro sem ira,
acariciou aqueles olhos que voltavam à limpidez do azul e do nada.
Recebera o aviso no fim do ensaio. O pai afogara-se na baía, tomara a barca para Niterói, tão logo sentiu-se desligado da terra, jogou-se na água. Sabia nadar, e
bem. Devia ter feito esforço para
provocar e suportar a morte.
Atrás de Betinha, alguém a suspendeu:
- Não adianta mais nada, fique tranqüila!
Arrancaram-na do corpo do
pai. Não sabia de onde, surgiu um
lençol branco que foi jogado em
cima dele. Quando o carro chegou, ela arrancou o lençol. Pousado no chão, o pai ficara diferente
agora. Não era o homem triste e
desengonçado, parecia uma ovelha sacrificada, nem sequer estava triste. Estava enorme.
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