São Paulo, sexta-feira, 19 de novembro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Cena de Betinha com o homem enorme

Era uma vez uma menina chamada Betinha. Bem, o começo não seria exatamente assim. Em criança, nas poucas vezes em que o pai a repreendia por alguma falta, ouvia num sotaque carregado:
- Berthe!
Mais tarde, quando entrou para o teatro, o nome fixou-se naquele: Betinha. Quase ao mesmo tempo em que o pai ficaria fixado em sua saudade. Parecia ontem ou não parecia nunca.
Fazia o segundo ano da Escola de Danças, costumava sair ao meio-dia. Um dos empregados do pai vinha esperá-la. Em raras vezes, o pai. Naquele dia, 22 de dezembro, proximidade do Natal, o pai lá estava, no terno surrado, o velho livro sempre nas mãos, "eu fui o maior livreiro de Berlim". Ela olhou para o beco e viu o vulto enorme, vermelho e triste.
- Alguma coisa, pai?
- Não.
E, depois de uma pausa que era sinal de hesitação, uma hesitação que nele era rara:
- Vamos almoçar.
Betinha caminhou ao lado daquele homem malvestido, desajeitado em suas enormes passadas. Ao lado dele, ficava pequenina e, por mais que se esforçasse, desajeitada também. Tomou coragem, não queria magoá-lo, ele não merecia isso:
- Pai, quando o senhor vier me buscar, deve botar um terno melhor. As colegas reparam nessas coisas, depois zombam de mim.
- Pode ficar descansada. Tomarei cuidado, realmente, me vesti hoje com pressa, muito trabalho na loja...
Dirigiram-se à rua do Rosário, onde funcionava o melhor restaurante alemão da cidade, cujo dono era seu amigo. À hora do almoço, ficava cheio. Ali, poucos freqüentadores não eram alemães. A presença do pai era notada nas mesas, olhavam-no com respeito. O pai explicava: "Eles sabem que eu fui o maior livreiro de Berlim, tinha a melhor livraria, Thomas Mann ia sempre lá".
Comiam coisas típicas, salsichões obesos, com salada de repolho, canecões de cerveja com caras de frades, rindo, em relevo. Naquele dia, o pai permanecia silencioso e, embora fosse sempre um homem silencioso, o seu silêncio, agora, era mais denso e triste.
- Pai, por que o senhor está triste hoje?
Ele olhou a filha com espanto:
- Hoje?
- Sim, hoje.
O pai abaixara a cabeça. Quando perguntara "hoje?", talvez desejasse perguntar "triste?".
- Amanhã faço 65 anos. E não estou triste, nem hoje, nem nunca. Sou calado, mas isso é outra coisa.
Betinha tinha 14 ou 15 anos, não pensou mais naquele diálogo. Sabia que o pai faria anos, já comprara um presente para ele, comeu uma torta de maçã com creme, especialidade da casa. O pai carregou no creme e, depois da sobremesa, bebeu, de um gole só, um enorme caneco de cerveja.
Ela reparou o pai: tudo o que saía daquele homem era enorme, enorme, calmo e triste.
- Bem, estou na hora, tenho ensaio à tarde.
O pai limpou a boca com o guardanapo e levantou-se. Ela, sem querer, enfrentou aquele olhar azul que a cerveja desmanchara um pouco, tornando-o avermelhado nos cantos.
- O senhor me leva?
- Levo.
Caminharam em silêncio pela cidade, esbarraram em muita gente, algumas pessoas reparavam naquele curioso par que andava em largas e enormes passadas -ao lado dele, ela insensivelmente acompanhava o jeito dele de caminhar.
- Bem, chegamos.
- Sim, chegamos.
Betinha beijou o pai. Subiu correndo as escadas que levavam ao palco. Ouviu o piano, alguém tocava um trecho do ensaio, a mazurca do primeiro ato de "Gisele". Também ela gostaria de repassar aquela dança alegre, as camponesas com fitas vermelhas nos cabelos. Quando atingiu o segundo lance de escadas, onde havia um pequeno corredor que dava para a rua, olhou pela janela: viu o vulto enorme, na calçada, acenando-lhe com a mão enorme. Ficava solene naquele gesto, deixava de ser desajeitado. Parecia um general coberto de glórias e de cansaços, saudando uma tropa imaginária.
Ela subiu o segundo lance das escadas. Se ainda tivesse mais tempo, desceria de novo, voltaria correndo para aquele homem e o abraçaria e o beijaria.
Tal como o abraçou e beijou, horas mais tarde, quando o corpo dele foi retirado do mar, ali na praça Quinze, e jogado no cais, à espera do carro que o levaria ao necrotério. Betinha então não teve vergonha de ser filha daquele homem enorme, que parecia mais enorme agora, estirado no cais. Ela se ajoelhou, colou-se ao rosto dele. Chorou um choro sem ira, acariciou aqueles olhos que voltavam à limpidez do azul e do nada.
Recebera o aviso no fim do ensaio. O pai afogara-se na baía, tomara a barca para Niterói, tão logo sentiu-se desligado da terra, jogou-se na água. Sabia nadar, e bem. Devia ter feito esforço para provocar e suportar a morte.
Atrás de Betinha, alguém a suspendeu:
- Não adianta mais nada, fique tranqüila!
Arrancaram-na do corpo do pai. Não sabia de onde, surgiu um lençol branco que foi jogado em cima dele. Quando o carro chegou, ela arrancou o lençol. Pousado no chão, o pai ficara diferente agora. Não era o homem triste e desengonçado, parecia uma ovelha sacrificada, nem sequer estava triste. Estava enorme.


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