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Artigo
É de fama e dinheiro que se trata a arte?
O sucesso hoje não depende só do valor intrínseco de uma obra, mas sobretudo da capacidade do artista de se inserir nas regras do mercado
LUCIANO TRIGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Duas exposições recentes, uma no Rio e outra
em São Paulo, sugerem
interessantes questões sobre
os rumos da arte contemporânea. Na instalação "Ainda Viva", a paulista Laura Vinci espalhou 7.000 maçãs sobre uma
mesa de mármore branco e o
chão de uma galeria; "Quebra-Molas", da carioca Débora Bolsoni, reproduziu um redutor de
velocidade feito com uma tonelada de massa de paçoca de
amendoim. As duas têm em comum a deliberada efemeridade
e o recurso a comestíveis como
matéria-prima.
Solicitado por uma revista a
comentar as duas exposições, o
poeta e crítico de arte Ferreira
Gullar afirmou: "Essa produção vai morrer aí. Trata-se da
arte da boa idéia, da Caninha
51. [...] Não tem artesanato, não
tem técnica, não tem linguagem. Já se usou de tudo: balde,
bacia, ovo frito. É uma falta de
imaginação, uma grande bobagem que não me interessa. [...]
Uma mancha no chão, uma
água escorrendo, tudo isso é expressão, mas não é arte".
As artistas se justificam falando da transitoriedade das
coisas vivas, de tentativas
de simbolização etc.
Arte contemporânea é um
tema em que é difícil tornar
produtivo qualquer debate,
pois sempre se cai num diálogo
de surdos, num Fla-Flu, isto é,
numa questão de adesão incondicional de torcedor, mais que
de reflexão crítica. O que temos
hoje são, de um lado, críticos,
como Ferreira Gullar e Affonso
Romano de Sant'Anna, que
contestam a legitimidade e o
valor de instalações como as de
Laura e Débora, e, de outro, artistas que rejeitam esse julgamento como reacionário.
Menos do que saber quem
está com a razão, importa constatar que desse atrito não sai
nenhum desdobramento interessante. Por quê? Algumas
hipóteses:
- Os artistas se tornaram
auto-suficientes: ignoram solenemente qualquer crítica que
os contesta.
- Os críticos perderam a importância que tinham no processo de legitimação da pro-
dução artística.
- Hoje, para um artista, importa muito mais se inserir numa rede de relações composta
de curadores, marchands e galeristas do que obter reconhecimento crítico.
Valor da arte
A noção de valor em artes
plásticas é altamente subjetiva.
Mas é também condicionada
pelo contexto histórico-cultural e pelo modelo de relação
entre economia e cultura que
estiver prevalecendo.
O sucesso de um artista hoje
não depende somente, nem
mesmo principalmente, do valor intrínseco do que ele produz, dos méritos plásticos ou
estéticos de sua obra, mas sobretudo de sua capacidade de
inserção num "sistema" que
funciona cada vez mais segundo as regras do mercado, do
consumo e da moda -mesmo
quando se veste o surrado disfarce da transgressão.
Pode-se simpatizar com as
maçãs de Laura e o quebra-molas de Débora -embora não representem nada novo nem original. Mas é preocupante que
esse tipo de produção -desligada da realidade, das questões
contemporâneas, de compromissos, da História, do presente, em suma, da vida real- monopolize os espaços da arte hoje. É uma produção que pode
até trazer fama, viagens e dinheiro a quem a faz, mas é disso
que se trata?
As duas instalações pecam
por serem obras inofensivas,
fechadas em si mesmas, que
não se articulam com nenhum
processo exterior a elas próprias. Os artistas têm obrigação
de vincular suas obras à realidade? Não. Mas, quando instalações desse tipo se tornam a
tendência dominante da arte,
fica a impressão de esgotamento e alienação.
Todos os movimentos de
vanguarda do século 20 que resistiram à prova do tempo devem parte de seu êxito ao fato
de terem mobilizado a sociedade, de estarem associados a
transformações sociais, culturais e tecnológicas que tinham
um impacto direto na vida das
pessoas. Basta pensar na relação do futurismo com a guerra
e com velocidade trazida pela
máquina ao cotidiano para
constatar que o novo não era
uma manifestação espontânea
e gratuita de gênios individuais.
Mesmo o surrealismo, com
seu projeto de libertar a criação
de qualquer controle racional,
só foi possível num contexto
de consolidação da idéia freudiana de inconsciente; mesmo
assim, numa segunda etapa, foi
associado por André Breton a
um projeto político de esquerda -o que é uma contradição
em termos, mas confirma o papel do contexto histórico na arte de cada época.
Quando Marcel Duchamp
expôs um urinol ou desenhou
um bigode na Mona Lisa, fez
um gesto revolucionário, que
rompia com as convenções e
abria possibilidades infinitas
para a arte. Mas, como todos os
gestos fundadores, é irrepetível, porque o contexto já passou: fazer um bigode na Mona
Lisa hoje seria apenas ridículo.
Abolidos os cânones, qualquer adolescente é capaz de
transgressões parecidas, e as
fronteiras entre a criação artística e a empulhação pura e simples se tornam muito tênues. A
falência da crítica como fator
relevante agrava esse quadro, já
que quem legitima o artista hoje é o sucesso em si: se faz sucesso, é bom. Nada mais capitalista. Mas talvez seja mesmo este o destino de todas as artes (a
literatura, a música etc), isto é,
enquadrar-se numa lógica de
mercado ou morrer.
Projeção no mercado
Mais grave que a repetição
anódina de fórmulas que fizeram sentido na primeira metade do século passado é o esforço, igualmente ultrapassado, de
épater a qualquer custo. Como
é cada vez mais difícil chocar as
pessoas, alguns artistas caem
no ridículo, numa tentativa desesperada de ganhar projeção
num mercado (pois é) cada vez
mais competitivo. Duas obras
que nos últimos meses apareceram na mídia são bem representativas desse fenômeno:
1) Numa exposição em Manágua, em agosto passado,
o artista plástico costa-riquenho Guillermo Vargas Habacuc
amarrou um cachorro num
canto da galeria e o deixou
lá sem comida, até morrer de
fome, diante dos olhos perplexos dos visitantes. Habacuc
se justificou: "O importante para mim era constatar a hipocrisia alheia. Um animal torna-se
foco de atenção quando o ponho em um local onde pessoas
esperam ver arte, mas não
quando está no meio da rua
morto de fome".
2) Em outubro, o artista plástico cipriota Stelarc convocou a
imprensa para mostrar sua
obra mais recente: ele implantou uma orelha no próprio braço. Não satisfeito, ele anunciou
que quer implantar um microfone próximo à orelha, para
captar o que estiver sendo
"escutado".
Será arte?
LUCIANO TRIGO é jornalista e editor de livros.
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