São Paulo, quarta-feira, 19 de novembro de 2008

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MARCELO COELHO

A mania de se frustrar


O tom de comentários após a vitória de Obama padece de um tipo de paternalismo sabichão

MUITA GENTE já se encheu com a euforia em torno de Barack Obama. "Calma lá, ele não é o novo Messias, depois vocês vão se decepcionar..." De minha parte, começo a me encher com os que já se encheram.
Quanta má vontade!
Claro que não se pode esperar a instauração do reino da felicidade sobre a Terra assim que Obama tomar posse. Ele tem complicações de sobra pela frente. Ao mesmo tempo, acho que anda muito entranhada na consciência das pessoas a idéia de que toda mudança é impossível, de que qualquer expectativa é tola, de que a menor esperança, por definição, já é exagerada.
O tom de muitos comentários depois da vitória de Obama padece desse tipo de paternalismo sabichão. Faço duas observações a esse respeito.
A primeira é que articulistas, "formadores de opinião" e quejandos tendem a acreditar que a maioria das pessoas é mais crédula e tola do que na realidade é. Credulidade e tolice existem em quantidade, mas não onde os comentaristas imaginam.
O cidadão que responde às pesquisas com otimismo é também o primeiro a ter uma visão desencantada da política; sabe muito bem que a vida continua e rapidamente deixa de acompanhar os detalhes da vida partidária e parlamentar.
Quem de fato acredita na importância da política não é o pesquisado, e sim o comentarista. Naturalmente, "a população" diz que "acha" que "as coisas vão melhorar". Mas não vivemos numa época messiânica. Essa expectativa é em si mesma temperada pela experiência cotidiana; quem a exagera, a meu ver, são os comentaristas, não os que a professam.
Uma segunda observação. Estamos acostumados demais com a sensação de que "nada muda". Vale lembrar que mudanças acontecem, sim; nós é que nos esquecemos rapidamente delas.
Quantas pessoas, por exemplo, não disseram que os planos de Gorbatchev eram pura retórica e propaganda? E como negar que Margaret Thatcher e Ronald Reagan puseram de cabeça para baixo um conjunto de convicções que era praticamente consensual nos tempos do "welfare state"?
Na geração dos meus pais, mesmo quem não era de esquerda dizia gravemente: "o socialismo é inevitável".
Não era. Na minha geração, repete-se o tempo todo que "o neoliberalismo é inevitável"... Será?
Até o maestro-mor do neoliberalismo global, Alan Greenspan, fez recentemente um mea-culpa a propósito de sua atuação no banco central americano. Mesmo assim, acredita-se teimosamente que nada vai mudar.
Nada mudava enquanto estava dando mais ou menos certo. Para bem ou para mal, a crise já é uma mudança.
E a eleição de Obama já é uma mudança também, em alguns aspectos pelo menos. O mais importante, acho, é o seguinte:
Durante as últimas décadas, o pensamento de esquerda esteve preso na armadilha da "política das identidades". Defendiam-se "direitos" de grupos específicos, os negros, os gays, as mulheres, os índios.
Afirmavam-se, além disso, as "diferenças", como se fossem boas em si, e como se não importasse, em larga medida, dissolvê-las em benefício de uma idéia humana universal.
A bandeira do "universal", do que é válido para todos em qualquer lugar, caiu nas mãos da direita: o Mercado, a Democracia, a Liberdade...
Com as distorções e crimes que se conhecem, o fato é que um discurso geral, legítimo em tese para todos, ficou entregue à direita, enquanto a esquerda se tornava particularista, manhosa, corporativa e melancólica. O maior significado de Obama, para mim, está no fato de que sua campanha não se baseou na afirmação das "diferenças". Ao contrário, a mensagem de Obama pôde ser vitoriosa justamente porque apagava todo particularismo, a começar o da própria origem racial do candidato.
Outra mudança importante foi o sistema de financiamento da campanha, pulverizado em contribuições pela internet. Não é que Obama se torne independente de lobbies e pressões, claro. Mas uma coisa é prometer mudanças contando com recursos angariados desse modo, e outra é prometer mudanças com a campanha paga por empreiteiras e banqueiros, como aconteceu no caso de Lula.
Ah, sim, Lula não fez mudança nenhuma, ficou tudo a mesma coisa...
Particularmente, me desiludi; mas só preciso ver os seus índices de popularidade para reconhecer que sou minoria nesse caso. Desiludir-se, afinal, é coisa de comentarista.

coelhofsp@uol.com.br


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