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São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 2003

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CINEMA/ESTRÉIA

"A MULHER DO AVIADOR"

No longa de 81, diálogo é tão decisivo quanto imagem, numa Paris que enfeitiça personagens

Rohmer explora confusões do imaginário

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O jovem François vai ao apartamento da namorada, Anne, às 7h da manhã deixar-lhe um bilhete. Como está sem caneta, desiste temporariamente. Compra uma e aproveita para tomar um café. Acaba pegando no sono. Desperta algum tempo depois, termina de escrever o bilhete e volta à casa de Anne. Mas, ao dobrar a esquina, vê a moça saindo do prédio com outro homem.
O espectador sabe o que se passou enquanto François dormia. O rival, o aviador, entrou no mesmo prédio, também para deixar um bilhete a Anne, que acordou com o ruído do papel passado sob a porta. Ele veio encerrar o romance que tiveram por alguns meses. Após tomarem café, saem juntos.
Sem saber disso, François está no direito de imaginar o que imaginou: Christian, o aviador, teria passado a noite com Anne. François tenta falar com a moça, mas esta não lhe dá conversa. Quando falam, mostra-se evasiva, indisposta para explicar alguma coisa.
Estamos em "A Mulher do Aviador", onde as sutis discrepâncias entre realidade e imaginário são o fundamento (como em boa parte dos filmes de Eric Rohmer). François encontra o aviador em companhia de uma mulher e põe-se a segui-lo.
Por que um homem ciumento seguiria o rival? O que ele tenta descobrir? É inútil tentar pensar racionalmente: é o seu ciúme que o leva. Ou a busca de uma história? Em todo caso, para que as coisas não fiquem assim simples, um novo personagem aparece, Lucie, que partilha com ele a investigação e, portanto, a imaginação.
"A Mulher do Aviador" afirma essa distância sutil porém decisiva entre a realidade e o discurso de cada um. Ela pode se dar pela evasão, caso de Anne, ou pela crença naquilo que as imagens podem levar a imaginar, caso de François.
Nessa altura, já sabemos que Rohmer pouco liga para quem acha que em seus filmes se fala demais. Se a distância entre o que se mostra e o que se fala, o que se pensa e o que se acredita que se pensa é fundamental num filme como este, inútil esperar que se fale pouco: os diálogos são tão decisivos quanto as imagens.
Imagens de paixão, mas também paixão pelo imaginário -que se consubstanciam, como bem esclarece a canção final, no verdadeiro amor que parece unir todos esses personagens: o amor por uma cidade. "A Mulher do Aviador" é um estranho e belo filme, em que cada personagem parece ter um mundo próprio e contrastante com o dos parceiros -todos amarrados uns aos outros, afinal, por Paris e pela forma delicada como enfeitiça os personagens. Reconstituir esse "ar" de uma cidade não é fácil. Rohmer o faz, outra vez, como mestre.


A Mulher do Aviador
La Femme de l'Aviateur     
Produção: França, 1981
Direção: Eric Rohmer
Com: Philippe Marlaud, Marie Rivière
Quando: a partir de hoje, no Top Cine 2



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