São Paulo, segunda-feira, 19 de dezembro de 2005

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NELSON ASCHER

Sugestão de leitura para 2006

Um humorista cujo nome não me ocorre definiu em poucas palavras e de maneira sem dúvida esquemática, mas nem por isso menos apropriada, o teor de quase todas as celebrações e/ou festividades judaicas: "Eles tentaram nos massacrar; nós sobrevivemos; agora, vamos comer". Nenhum feriado ilustra melhor a definição acima do que o Purim, a comemoração anual do desfecho afortunado dos eventos narrados no livro bíblico de "Ester" e que, em 2006, cairá nos dias 15 e 16 de março.
A palavra "purim", se bem que possa estar vinculada a uma raiz hebraica que, querendo dizer algo como "romper", "quebrar", não deixa, portanto, de fazer sentido no âmbito dessa história, origina-se mais provavelmente no antigo persa e seria o plural de "pur", isto é, "sorte", na acepção de "lançar a sorte", "sortear". O sorteio em questão era aquele através do qual Amã determinara o dia em que acertaria suas contas com os judeus. Amã, o vilão do "Livro de Ester", era vizir (ministro) do rei da Pérsia imperial, Assuero (talvez o mesmo que os gregos chamavam de Xerxes). O império tinha uma numerosa população judia, e o líder desta, Mardoqueu, caíra nas boas graças do soberano, pois havia descoberto e o informara de que alguns eunucos da corte planejavam assassiná-lo. Torturados, estes confessaram sua trama e foram executados.
Outros fatores aguçavam a irritação de Amã a ponto de este ter (lançando mão, inclusive, do suborno) persuadido o patrão a exterminar todos os judeus de suas "127 Províncias que se estendiam da Índia à Etiópia". Em primeiro lugar, seguindo as leis de seu povo, Mardoqueu recusava-se a prostrar-se diante do vizir e, em segundo, era sua prima, Ester, que se tornara a mulher do monarca (ou, mais precisamente, sua favorita, uma vez que ele, como qualquer déspota oriental que se prezasse, possuía um belo e vasto harém).
Ester, a heroína da lenda, chamava-se originalmente Hadassá ("murta", em hebraico) e deve ter recebido seu novo nome (quem sabe ligado ao da deusa mesopotâmica Ishtar, a que descera aos infernos para resgatar Tammuz, seu amado morto, ou ao radical indo-europeu do qual vêm os termos "astro" e "estrela" em nossa língua) quando ingressou no harém real. Interpretações posteriores conectam o nome à expressão hebraica para "esconder" ou "oculto", o que também é pertinente, porque foi preferindo não revelar sua origem étnica ao marido que a rainha se achou depois na posição que lhe permitiria interceder junto a ele para salvar sua gente das intenções nefastas de Amã.
O livro, um dos últimos a serem incorporados à Bíblia judaica ou, do ponto de vista cristão, ao Antigo Testamento, relata como, informada dos desígnios genocidas do vizir por seu primo, a heroína, no decorrer de dois banquetes oferecidos tanto a este como a Assuero, desmascara Amã, leva seu marido a pensar que este a queria seduzir ou violentar e o faz executar na forca (ou estaca, pois há traduções que se referem a enforcamento e outras, a empalação, estas, aliás, mais realistas) que ele preparara para Mardoqueu. E, assim, nos dias sorteados para seu próprio extermínio, os judeus do Império Persa, revertendo sua sorte ou destino, eliminaram seus inimigos locais aos milhares. (Convém, afinal, lembrar que a Bíblia foi redigida antes de a correção política entrar em vigor.)
São duas as principais versões dessa obra que nos chegaram, uma, mais breve, em hebraico e a outra, com certos acréscimos, em grego (e cuja base deve ter sido um original hebraico que se perdeu). Em ambos os casos, a história se assemelha a um conto oriental típico, tal qual os que se encontram nas "Mil e Uma Noites", com suas descrições minuciosas e imaginativas de rituais opulentos, festanças extravagantes, monarcas caprichosos, intrigas palacianas etc. A própria Ester é uma espécie de proto-Sheherazade, a narradora ficcional e protagonista dessa imensa coletânea árabe de contos, muitos dos quais nasceram na Índia e atravessaram a Pérsia antes de alcançarem o sudeste da bacia do Mediterrâneo e, depois, através de escritores como Boccaccio e Chaucer, tanto a Europa quanto o resto do mundo.
Quanto há de factual nessa história bíblica é, a cerca de 25 séculos de distância dos acontecimentos hipotéticos, impossível de dizer. Suas lições, no entanto, são bastante claras, e a central é a de que povos pequenos, submetidos aos vaivéns temperamentais de povos maiores ou mais poderosos e de seus líderes ou tiranos, precisam estar sempre atentos e devem saber recorrer a todos os ardis necessários para assegurar não seu bem-estar e ainda menos qualquer privilégio ocasional, mas, sim, sua mera existência física. Nações relativamente fracas e constantemente à mercê de vizinhos pujantes, digamos, a Irlanda, Portugal ou a Polônia, tentaram, ao longo de sua trajetória e de acordo com circunstâncias favoráveis ou não, embora nem sempre com sucesso, seguir tais ensinamentos.
Jorge Luis Borges, um admirador confesso das "Mil e Uma Noites", certamente se inspirou em "Ester" para compor "A Loteria da Babilônia", um conto que transcende os horrores banais ao imaginar uma sociedade regida pelo azar dos jogos e entregue menos a uma sorte aberrante do que a um sorteio incessante. Sociedades similares (a Rússia soviética, a China maoísta, a Europa ocupada pelos/ou aliada aos nazistas, o Camboja do Khmer Vermelho) não faltaram em tempos recentes. E, a começar pela data mesma do próximo Purim, tampouco faltam razões para principiar 2006 lendo uma história que, se pode ser velha, nada tem de obsoleta.


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