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NELSON ASCHER
Sugestão de leitura para 2006
Um humorista cujo nome
não me ocorre definiu em
poucas palavras e de maneira
sem dúvida esquemática, mas
nem por isso menos apropriada, o
teor de quase todas as celebrações
e/ou festividades judaicas: "Eles
tentaram nos massacrar; nós sobrevivemos; agora, vamos comer". Nenhum feriado ilustra
melhor a definição acima do que
o Purim, a comemoração anual
do desfecho afortunado dos eventos narrados no livro bíblico de
"Ester" e que, em 2006, cairá nos
dias 15 e 16 de março.
A palavra "purim", se bem que
possa estar vinculada a uma raiz
hebraica que, querendo dizer algo
como "romper", "quebrar", não
deixa, portanto, de fazer sentido
no âmbito dessa história, origina-se mais provavelmente no antigo
persa e seria o plural de "pur", isto é, "sorte", na acepção de "lançar a sorte", "sortear". O sorteio
em questão era aquele através do
qual Amã determinara o dia em
que acertaria suas contas com os
judeus. Amã, o vilão do "Livro de
Ester", era vizir (ministro) do rei
da Pérsia imperial, Assuero (talvez o mesmo que os gregos chamavam de Xerxes). O império tinha uma numerosa população
judia, e o líder desta, Mardoqueu,
caíra nas boas graças do soberano, pois havia descoberto e o informara de que alguns eunucos
da corte planejavam assassiná-lo.
Torturados, estes confessaram
sua trama e foram executados.
Outros fatores aguçavam a irritação de Amã a ponto de este ter
(lançando mão, inclusive, do suborno) persuadido o patrão a exterminar todos os judeus de suas
"127 Províncias que se estendiam
da Índia à Etiópia". Em primeiro
lugar, seguindo as leis de seu povo, Mardoqueu recusava-se a
prostrar-se diante do vizir e, em
segundo, era sua prima, Ester,
que se tornara a mulher do monarca (ou, mais precisamente,
sua favorita, uma vez que ele, como qualquer déspota oriental que
se prezasse, possuía um belo e vasto harém).
Ester, a heroína da lenda, chamava-se originalmente Hadassá
("murta", em hebraico) e deve ter
recebido seu novo nome (quem
sabe ligado ao da deusa mesopotâmica Ishtar, a que descera aos
infernos para resgatar Tammuz,
seu amado morto, ou ao radical
indo-europeu do qual vêm os termos "astro" e "estrela" em nossa
língua) quando ingressou no harém real. Interpretações posteriores conectam o nome à expressão
hebraica para "esconder" ou
"oculto", o que também é pertinente, porque foi preferindo não
revelar sua origem étnica ao marido que a rainha se achou depois
na posição que lhe permitiria interceder junto a ele para salvar
sua gente das intenções nefastas
de Amã.
O livro, um dos últimos a serem
incorporados à Bíblia judaica ou,
do ponto de vista cristão, ao Antigo Testamento, relata como, informada dos desígnios genocidas
do vizir por seu primo, a heroína,
no decorrer de dois banquetes
oferecidos tanto a este como a Assuero, desmascara Amã, leva seu
marido a pensar que este a queria
seduzir ou violentar e o faz executar na forca (ou estaca, pois há
traduções que se referem a enforcamento e outras, a empalação,
estas, aliás, mais realistas) que ele
preparara para Mardoqueu. E,
assim, nos dias sorteados para seu
próprio extermínio, os judeus do
Império Persa, revertendo sua
sorte ou destino, eliminaram seus
inimigos locais aos milhares.
(Convém, afinal, lembrar que a
Bíblia foi redigida antes de a correção política entrar em vigor.)
São duas as principais versões
dessa obra que nos chegaram,
uma, mais breve, em hebraico e a
outra, com certos acréscimos, em
grego (e cuja base deve ter sido
um original hebraico que se perdeu). Em ambos os casos, a história se assemelha a um conto
oriental típico, tal qual os que se
encontram nas "Mil e Uma Noites", com suas descrições minuciosas e imaginativas de rituais
opulentos, festanças extravagantes, monarcas caprichosos, intrigas palacianas etc. A própria Ester é uma espécie de proto-Sheherazade, a narradora ficcional e
protagonista dessa imensa coletânea árabe de contos, muitos dos
quais nasceram na Índia e atravessaram a Pérsia antes de alcançarem o sudeste da bacia do Mediterrâneo e, depois, através de
escritores como Boccaccio e
Chaucer, tanto a Europa quanto
o resto do mundo.
Quanto há de factual nessa história bíblica é, a cerca de 25 séculos de distância dos acontecimentos hipotéticos, impossível de dizer. Suas lições, no entanto, são
bastante claras, e a central é a de
que povos pequenos, submetidos
aos vaivéns temperamentais de
povos maiores ou mais poderosos
e de seus líderes ou tiranos, precisam estar sempre atentos e devem
saber recorrer a todos os ardis necessários para assegurar não seu
bem-estar e ainda menos qualquer privilégio ocasional, mas,
sim, sua mera existência física.
Nações relativamente fracas e
constantemente à mercê de vizinhos pujantes, digamos, a Irlanda, Portugal ou a Polônia, tentaram, ao longo de sua trajetória e
de acordo com circunstâncias favoráveis ou não, embora nem
sempre com sucesso, seguir tais
ensinamentos.
Jorge Luis Borges, um admirador confesso das "Mil e Uma Noites", certamente se inspirou em
"Ester" para compor "A Loteria
da Babilônia", um conto que
transcende os horrores banais ao
imaginar uma sociedade regida
pelo azar dos jogos e entregue menos a uma sorte aberrante do que
a um sorteio incessante. Sociedades similares (a Rússia soviética,
a China maoísta, a Europa ocupada pelos/ou aliada aos nazistas, o Camboja do Khmer Vermelho) não faltaram em tempos recentes. E, a começar pela data
mesma do próximo Purim, tampouco faltam razões para principiar 2006 lendo uma história que,
se pode ser velha, nada tem de obsoleta.
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